quinta-feira, 14 de junho de 2007

O aprendizado
















(Goya - Saturno)



Quando finalmente,
Homem me tornei,
De mente, feições, gestos e corpo
E senti que me insuflavam, os deuses,
De quatro, o segundo sopro
Chamou-me, meu pai com a sua expressão sisuda
Não me reeprendeu
Não me sovou pela minha conduta
Antes, um pecúlio, no bolso, me meteu
E, preservando a fronte carrancuda
Disse-me: "Toma! Chegou a hora! Vai à luta!"

Não sabia o que me sucederia, relembro,
Era uma tarde chuvosa de Novembro
E sem tempo para soluço, sem um único ai
Deixei, tremendo, a casa de meu pai

Eu era instruído, criativo, tinha sonhos
Oh, que sonhos!
Oh, ingenuidade!
Construir Elíseus gregos,
Devolver a visão aos cegos,
Colocar a nação no pódio
Tornar férteis desertos secos
(Oh, verde idade!)
Achar a cura do ódio

E a pouco e pouco
A cada porta que batia
À procura de ofício
Era um sonho que se desfazia
Ninguém queria um salvador belo e bravo
Por acaso, não saberia eu de um diligente escravo?

Escravos dos escravos dos escravos!
Cravos dos cravos, encravados!
Dizia esta filosofia que por toda a parte ouvi
Que senhor de si é quem tem escravos
E que se eu não os tinha era porque um deveria ser
“Alegre-se, senhor!”, diziam,
"Quem é escravo tem porta onde bater!"

Mas que profissão era essa, a de ser escravo?
Onde podia eu tirar um curso de subserviência?
Era um dom com que se nascia?
Uma manifesta tendência?
Uma inata apetência para o servir e ser rebaixado?
“Oh! Meu deus! Tenho fome, não quero morrer!
Preciso de trabalhar para comer!
Alguém, por favor, me ensina a ser escravo?”

E pelas ruas da cidade voguei
Que nem um perdido
Visto a alternativa a ser escravo
Ser tornar-me bandido
Procurei a pior e a mais abjecta súcia
Uma cáfila tal que não a perdoaria a irmã Lúcia
E desde logo, na arte da burla, comecei a ser instruído

Surripiar, escamotear,
Roubar ao cego em vez do curar
Toda esta técnica eu observava, pasmado
Mas como nesse mundo baixo como o ventre
Nada de nada é sagrado
A súcia não descansou contente
Enquanto não me viu defraudado




















“Ah! Não há sítio seguro!”, queixei-me
“Não há castelo, fortaleza ou muro
Que por muito duro
Coloque à escravidão açaime"
E já perto da amargura, do cinismo
Vi que perdia a inocência
Corri para os braços do baptismo,
Da divina clemência
E desfazendo-me do meu parco dinheiro
Dei entrada num mosteiro

Daí em diante, doravante
Concomitante com a beatitude,
No contrato expresso realizado com Jeová
Desdobrava-me em solicitude
Para não despertar a Sua ira
E poder cear o Seu maná

Ajoelhava-me a elogiá-Lo
Vinte vezes ao dia
E nesse cerimónia
Ele era tudo, eu não existia,
Clamava pela sua infinita boaventura
Mas uma ideia, contudo, persistia
O que era aquela sacristia
Senão um altar à escravatura?

Desordenei-me e fui excomungado
Saí dali, eu o diabo a meu lado
E desde então,
Após toda a experiência e verificação
Ousei concluir no fim:
“Não existe na terra um lugar para mim!”

Desde então passo fome,
Não sei se amanhã tenho tecto
E isto não é senão mais agrura
Sei-o porque escolhi esse defeito
Não sei para o que tenho jeito
Mas não o tenho, de certeza, para a escravatura

Olho, hoje, o firmamento
Sinto acariciar-me a cara, o vento
Rodeiam-me os mistérios da terra
A treva brilhante e a aurora obscura
E sinto inflamar-me por dentro
O fogo portento do homem que erra
E é sem escravatura.

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