quinta-feira, 30 de agosto de 2007

As comadres

Quando as comadres se juntam a um canto
E soltam as línguas com um quilómetro
Do nada urdem, num instante, um manto
Bordado de escândalo e de assombro

Entretidas esmiúçam as vidas
Condimentando-as com muito sal
E ficam deveras divertidas
Apontando a raiz do mal

Ele é aquele vizinho que trai a mulher
E aquela mulher que trai o vizinho
E aquele, um chupista! Anda de choffeur!
E aqueloutro, um incapaz, o pobrezinho!

Quando as comadres se juntam a um canto
A sua finalidade é bem sabida
Cheias de asco, apontam aos outros o tanto
Que falta à sua própria vida

É uma felicidade quando uma vê a outra
Apressam-se a pôr a conversa em dia
E sentem-se mais limpas, com nova roupa
Maldizendo o cunhado, o genro, a tia

Mas se não há nada para falar
Ai! Que não chegue esse terrível segundo!
É preciso, então, inventar
Calúnia que as desvie do seu risível mundo

“Olha aquela! De mini-saia! Uma porca!
Olha aquele! De carro novo! Um canastrão!
Aquele miúdo, pobre coitado, um idiota!
Os pais não lhe deram educação?”

Quando as comadres se juntam a um canto
As cabeças rolam por aí além
Da cave esquerda ao terceiro direito
Não escapo eu, não escapa ninguém.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Uma mulher controla

Uma mulher controla
Elevando a bitola
Uma mulher controla
Exigindo-te esmola

Fazendo-te saltar a mola
Tocando-te como uma pianola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

E assim que tentas recuperar parte do teu reinado
Logo, de misoginia, és prontamente acusado
Porque tratando-te como um estarola
Levando-te fechado dentro da sacola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controla chorando,
Implorando-te, nua
Compadecendo-te, amolecendo-te
Com a sua natureza crua
E quando finalmente a crise se atenua
Vês que afinal era só uma graçola
Porque, na verdade,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

E assim que tentas obter, do paraíso, um bocado
Logo, de machismo, és imediatamente acusado
A tua virilidade torna-se uma piada farsola
A tua inteligência, uma anedota de corredor de escola
Porque, afinal,
Uma mulher controla
Uma mulher controla













Uma mulher controla dizendo:
“Eu não consigo! Eu sou frágil!
Explica-me outra vez!”
E quando te cansas de explicar os porquês
Diz: “Eu já sabia!”
Com o ar mais inocente e mais cortês
Com um ar que te desafia
E tu controlas a indignação que te empola
Porque, no fundo,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Mas se lhe exiges um pretexto para os seus actos
és escandalosamente acusado de maus-tratos
E só há uma razão para a angústia que te assola
A de que, da biqueira do sapato ao alto da gola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controla
Com o seu ímpeto tagarela
Saturando-te com paleio
Sobre a vida dela
Vira o disco e toca o mesmo
Como uma eterna grafonola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Mas se lhe pedes o silêncio, um merecido intervalo
Acusa-te de nunca ouvires o seu sincero abalo
Ofende-se, comove-se
E a lágrima pelo seu rosto rola
Porque, verifica-se,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controlou
Quando te pôs no mundo, como mãe
Controlar-te-á, ainda, uma mulher
Quando fores para o além
Herdando a tua riqueza
Que do árduo trabalho provém
Passeando diamantes
Controlando novos amantes
Enquanto o teu caixão, na lama, se atola
Porque, no fim de tudo,
É sabido, neste mundo
Uma mulher controla.

sábado, 25 de agosto de 2007

Lenir o cansaço de existir

Que seria da existência
Sem os vulgos prazeres?
Suportaríamos os deveres
Os pesados afazeres
Sem perder a paciência?
O que fariamos com a modorra?
Caros amigos, tenham paxorra
É preciso lenir o cansaço de existir

Já não posso com os pés e as mãos de tanto bulir
É preciso lenir o cansaço de existir

Os doces de alcova,
Os vícios de intervalo
Não existe esse regalo
Para que suportemos a caminhada?
Onde cabe nisto tudo a culpa?
Quem inventou essa desculpa
Para a grei andar domada?

Já não posso com a cabeça, doi-me a voz de tanto discutir
É preciso lenir o cansaço de existir

Não será um insulto à existência
Frustrarmos os prazeres
Com que ela nos dotou?
Digo isto porque se quedou,
O nosso corpo, há dois mil anos,
Onde um falso celibatário andou
Entre os judeus e os romanos
Pregando a sua ingerência

Oxalá seja mais leve o longínquo devir
É preciso lenir o cansaço de existir

Não há castidade pura
Que não seque ou murche em duas gerações
Como se vive, depois, sem recordações
Da perda dessa candura?
É para inventariar o pecado
Que os céus são extensos
E os seus amanuenses – anjos pretensos
Mas há dois milénios que no céu é feriado
E de todos os sofredores
Só Job foi indemnizado

Já não tenho forças nem para tossir
É preciso lenir o cansaço de existir

Como? Preguiça é crime?
Mas há lá prática mais sublime
Para espicaçar a criatividade!
Não nos criou Deus no princípio
E descansa há uma eternidade?
Dotou-nos da sua culpa danada
Encheu-nos de fome e de pancada
E, desde então,
Nunca mais fez nada

Não há nenhum deus que me venha acudir
É preciso lenir o cansaço de existir.

A falsa antítese: moral e prazer

Quem corta uma mão para que
Não estorve a acção da outra?
Quem fura de propósito uma vista
Para ver melhor da que sobra?
Quem persegue essa insana obra?
Quem se abstém do prazer, para ser virtuoso
E sendo virtuoso se esquece de ser feliz?
Quem ignora o que o seu corpo diz
E se obceca a controlá-lo?
Quem abertamente o despreza
Procurando amá-lo?
Quem é o infeliz
Que se compraz em castrá-lo?
Quem é que, entre vós,
De vontade própria abafa a sua voz?
Quem é que se tem por meretriz
Quando por um segundo se descuida
Pensando em jogos pueris?

Se és vós, deixai-me dar-vos um conselho:
Assim jamais chegarás a velho!
Ética não é antítese de prazer carnal
O mais completo eudomonismo
Encerra em si mesmo um hedonismo
Mas vós preferis
Torcer, ao prazer, o nariz
Ver em todo o lado... o Mal.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Paralelismos aos dias da ira

Nos dias da ira a minha vontade expira
Só penso em destruir
Corro como louco como o bruto Orinoco
- O Tejo não, que o seu tormento é rouco –
Um tritão sem tridente
No fundo do Guadalquivir
O Etna, deixando a fase latente
Após muitos séculos dormente
Quer exercitar os membros, expandir
A sua cratera é uma insalubre fossa demente
Quer atirar connosco ao nadir

Há na Manchúria taigas perversas
Geadas agrestes, avessas
À ideia do homem existir
Sou, então, como uma delas
Dessas que pintadas em telas
Parecem da moldura querer se evadir
Convoco a neve à galeria
Minhas chuvas são uma antítese da alegria
E os meus ventos sombras do devir

Nem em Leiria os pinhais mansos, de pinheiros bravos
Nem em Monchique os sobreiros velhos, domesticados
Encontro paralelismos para os meus dias da ira
Só os pólos austeros, habitados
De bestas e demónios alados
Ombreiam com os desacatos provocados
Pelos meus dias da ira

No fundo dos mares, as moreias repelentes
E os tubarões de dentes salientes
Incutindo fé aos medrosos crentes
Raias eléctricas e leviatans
Que desacreditam os amanhãs
São, ao meu lado, umas bonequinhas de vestir
Os elefantes indianos,
Os tigres comedores de humanos
Os bárbaros inumanos de Alcácer-Quibir
Arrancam-me quando muito um bocejo de dormir
Não há na natureza
Uma imagem que com franqueza
Me permita transmitir
O que nesses dias é a minha destreza na vontade de destruir

Contudo, tu que me vês assim
Tu, que já me viste como os lagos da Baviera
Pacífico, parado, como as neves da serra
Um Atacama onde a areia se não ergue
Um estreito de Bering sem iceberg
Tu que me conheces como ninguém
Olhas para mim, para o meu ar irado
E não te pareço mais que um gatinho assustado
Perseguindo obsessivamente a sua cauda tosca
E sabes com uma sabedoria de Matusalém
Que não meto medo a ninguém
Que não faço mal nem a uma mosca.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Os neo-helenos

O que nos oferecem estes tempos
Que nos convençam a ficar?
O que neles me persuade?
A ideia de liberdade?
A sua atmosfera de lupanar?
Mas se tudo isso é volátil e eu não lhe posso tocar!

O que me oferecem estes tempos, digam-me,
Que me persuade a não partir?
Dos prazeres, das alegrias colho os restos
As flores, se as pego, têm espinhos funestos,
Sangram a borbotos minhas mãos sobre os cardos
Os regatos, secos se os alcançamos,
Estagnados, cheios de moscardos,
Desonestos, desumanos
Brilham apenas na miragem,
Na vontade de os alcançarmos

As florestas são de vidro
As chuvas, de pedra da Manchúria
As gentes, estátuas de Policleto
Incentivando-nos à penúria
Serei turista convencido
Pelo colorido da brochura,
Pela beleza estática e plana do panfleto?
Se sim, abdico agora mesmo da procura
É ao olvídio que eu me remeto

Mas digam-me, o que me oferecem estes tempos?
O que me dão eles que me sussurre:
“Não te vás ainda.”?
O que me dão que perdure,
Que me alimente e que me cure?
As obras piramidais,
Os constructos monumentais,
As mil maneiras de saciar a fome que não finda?
Dão-me os tempos o que apregoam
Os convincentes comerciais:
Uma lata de feijão pela mão de uma modelo linda?

Quem vive o que se vive no refrão das canções,
Os ais, suspiros, todas as emoções?
Quem o tem em demasia que mo faça ter de somenos?
E são eficazes esses venenos?
Quem experimentou já essas poções?
Que intervale as suas pulsões!
Que desça ao Inferno dos terrenos!
Para me encaminhar ao Olimpo dos neo-helenos!

O herói promissor

Chorar não choro
Que as tintas dissolvem
Chorar não choro
Não dar prazer aos que me comem
Chorar não choro
Riposto c’a histrionia
Rir – só com o fracasso
Sim, sou um palhaço
Mas não por alegria

A rir por rir
Não me obrigarás
Andar às arrecuas como Satanás
Sorrir por sorrir
Porquê? Não sou um Vizir
Não tenho haréns como os Paxás
Nem a chorar nem a rir
Só para te divertir
Como me sabes me acharás

Carrancudo, taciturno
Macambúzio como se lhe devessem o mundo
Enjoado, calado e circunspecto
Possuo um tal aspecto
Que ao passarem por mim, as crianças
Como que trespassadas por lanças
Gritam com horror profundo:
“Meu Deus! Que homem aquele! Q’horror! Doente e imundo!”

É por capricho que não mudo
Por teimosia que não sorrio
Quero-me assim carrancudo
Para afastar de mim o mundo
E todo o seu veneno frio

É por casmurrice inveterada
E se cedo à gargalhada
É só quando algum dos vossos heróis
Hercúleo e de negros caracóis
Se afoga, drasticamente, no rio

Ouço-vos então, as lágrimas, as histórias
Da bela infância roubada
Como um dia carpiram por mim
Enquanto nesse rio eu me afogava
Hercúleo e de negros caracóis
Como o mais promissor dos heróis
Eu ia ao fundo e vocês: nada

De bom grado daria a mão a esse afogado
Se soubesse que salvá-lo, ressuscitá-lo,
Não o traria à vossa companhia
Como quando me resgataram a esse lago
Depois de me terem empurrado
E entre-dentes me gozavam, encharcado
E eu sorria, e sorria

Declarei, desde então, o fim do sorriso e das lágrimas
Arranquei todas essas páginas
Os sucessivos banhos frios
Rosno, tenho raiva, mostro-vos os dentes
Quero-vos ao longe, aos contentes
Com os vossos afogados e os vossos rios

E se me achais triste, soturno, descontente
Mal desafogado, amargurado, cheio de dor
Sabei que rejubila a minha mente
Por não ser mais o vosso herói promissor.

sábado, 4 de agosto de 2007

O ausente

Um homem de meia-idade, Mário Manso, tomou-se de amores por uma mulher de uma aldeia vizinha. Essa mulher era bela, da sua geraçao, e havia permanecido solteira por ser muito independente e não aceitar que qualquer um mandasse nela. Os dois casaram-se e foram viver para casa dele, apesar de muito o haverem aconselhado a não o fazer.

- É mulher ruim! Foi cortesã de muitos e acabou desposada de nenhum! Nunca se interessou pelas lides da casa, não sabe sequer costurar!

Protestaram alguns familiares que asseveravam apenas querer o seu bem. Porém, do seu bem sabia ele e não quis dar ouvidos a vozes soltas, até porque aquela fora a única mulher, entre várias, que o havia resgatado a um descontentamento incompreensível que muitos anos grassara dentro de si.
Por dois anos o homem e a mulher se entenderam naquela casa levando vida leve e feliz. Ele, porém, era marinheiro da marinha mercante e andava embarcado uma metade do ano para voltar para junto dela a segunda metade. Ora, nesses dois anos, das duas vezes que regressou à aldeia vindo de mar, lhe foram as vozes soltas adverti-lo de que a esposa, durante a sua ausência, se portava mal relativamente ao laço de conjugalidade. Por duas vezes o Mário Manso desacreditou essas vozes dando apenas ouvidos à sua consciência e às evidências da deferente e carinhosa atitude da sua mulher para com ele.

- É um crime e uma perfídia que envenenem a mente de um homem contra a sua maior e mais querida protectora! - Gritou-lhes e virou as costas a essas vozes fátuas tendo, desse dia em diante, cortado relações com a sua aldeia. Ficando triste e zangado por haver cortado os laços com os seus irmãos, primos e muitos familiares, que perfaziam a totalidade dos habitantes da aldeia, consolou-o a mulher:

- Somente a ti eu pertenço. Digo-te que é precisamente por ter sido habituada a tentações que as aprendi a declinar. Pelo contrário, as tuas irmãs, cunhadas e primas, que por falta de formosura nunca foram tentadas e por obrigação se casaram… elas, sim, muito mais depressa se entregariam aos falsos elogios de um estranho!

Cativado pela beleza e força interior da sua mulher o marinheiro deitava a cabeça no seu regaço, sentindo-se triste mas algo confortado.

- Como podem eles ver crime e sujidade onde tão claramente eu vejo beleza e força?

E perguntando-se isto, adormecia de cansaço pela sua mágoa, com a mulher entrelaçando os dedos no seu cabelo.
Chegado o dia em que teve de voltar a partir para o mar, abraçou e beijou a mulher no porto, frente à grande nau, e os olhos dele estavam humedecidos com lágrimas. A mulher, no entanto, fez como se ignorasse a desconfiança que ele assim lhe demonstrava e encorajou-o.

- Vá, meu esposo! Leva-me contigo neste medalhão e jamais estaremos longe um do outro.

O Mário Manso inclinou a cabeça e ela colocou-lhe o fio com o medalhão em volta do pescoço, ao que após isto ele se afastou com ombros e cabeça descaídos e andar pesado em direcção ao cais de embarque.

Enquanto andava no alto mar o homem era de poucas falas mas muito respeitado pela sua capacidade de trabalho.
Um dia, no meio do Oceano, tendo acabado a sua labuta, olhava contemplativamente o horizonte e pensava na sua esposa quando um estranho se aproximou. Este era um jovem invulgarmente sadio e belo que tendo-se apresentado como seu novo colega assim lhe falou:

- Aí, nessa direcção para onde olhais conheço eu uma bela terra! As vinhas são particularmente resplandecentes e as casas caiadas têm um ar de neve, as mulheres são rosadas e roliças e as solteiras usam lenços verdes na fronte para se indicarem aos pretendentes. Lá para os fins de Março os habitantes reúnem-se todos numa gruta junto ao mar e oram ao deus touro e quando o céu adquire certa cor rosada, como a do primeiro vinho, eles sabem que a colheita vai ser boa. Celebram-se, então, vinte e dois dias e vinte e duas noites de festa e as moças casadoiras fazem-se convidar para bailar saltitando e dando pequenos guinchos como cotovias na alvorada.

Ouvindo isto e meio pasmado, exclamou o marinheiro:

- Mas, diabos! Se não é da minha própria terra que falas!

Tratava-se, com efeito, da sua terra natal, que o jovem havia por uma vez visitado. E muitos dias se seguiram em que os dois, após a labuta, se reuniam naquele convés para recordar como era bela a terra e caricatos os seus habitantes. Um dia, tendo-se tornado grande amigo dessa novo colega invulgarmente belo e sadio, quis convidá-lo à sua terra e a sua casa, vontade essa que prontamente lhe transmitiu. Sentindo-se bastante honrado, o jovem acentiu, pois só ainda uma vez desembarcara no referido local, donde havia colhido e levado consigo as mais calorosas memórias.

Passados alguns meses, desembarcou Mário e o seu novo amigo na terra natal do primeiro e logo se prontificou o anfitrião a apresentar o convidado aos demais habitantes. Contudo, tendo-se esquecido de que se havia posto de mal com os seus conterrâneos, foi recebido com azedume. Embora entristecido, convidou o jovem para sua casa e para o recompensar daquele inesperado inconveniente pediu à mulher que tratasse o colega como um rei presenteando-o com grande repasto e o mais apurado vinho. E assim, como um hóspede de um palácio, foi recebido durante duas semanas o novo colega.
Tendo chegado o fim da segunda semana, o marinheiro foi subitamente chamado a embarcar e comunicou-o com tom triste à sua esposa e amigo. A esposa lamentou-se e, quanto ao amigo, informou o homem que o seu navio chegaria apenas uma semana mais tarde. Dando um passo em frente, olhando cabisbaixo e circunspecto para Mário, o convidado disse-lhe:

- Amigo, por duas semanas me recebeste debaixo do teu teto. Na tua agradável companhia, e na da tua mulher, usufrui da melhor hospitalidade e mordomia. Esta súbita notícia deixa-me perturbado pois que o meu embarque se fará apenas daqui a mais uma semana e até lá não tenho onde ficar. Permiti, pois, que faça o que noutras circunstâncias nunca te pediria, que permaneça debaixo do teu teto mais sete dias sob a promessa de respeitar e honrar a tua mulher, nos bons termos e disposições de São Julião, o hospitaleiro.

O marinheiro ouviu tudo isto com um terror frio a percorrer-lhe a espinha, pois, se por um lado não se conseguia esquecer das recomendações dos seus conterrâneos, por outro, não podia deixar de ser hospitaleiro para com aquele bom amigo que até ali só lhe mostrara dignidade e confiança. Então, após ter limpo o suor frio da testa e de ter ponderado por uma fracção de segundo, puxou o convidado para um outro quarto, longe dos ouvidos da mulher, e disse-lhe:

- Meu caro, tenho todo o gosto em te conceder esse favor! Contudo, posso apenas acentir sobre certas condições: trata-se de minha mulher. Não duvides que a amo mas é-me difícil conviver com certos comentários da população. Sinto-me enlouquecer e por vezes, quase dou comigo a acreditar nas palavras deles. Mas eles é que são os loucos! Sei-o bem! E é por isso que o preciso provar! Peço-te que na minha ausência fiques atento aos modos de minha mulher contigo sem que, contudo, se tal suceder, cedas aos seus encantos. Contar-me-ás depois, ao meu regresso, sobre o amor que ela me tem. E mais uma coisa: peço-te humildemente que me perdoais este meu ardil pelo facto de não conseguir suportar ter sido excomungado do seio dos meus irmão e parentes, entre os quais estava habituado a viver.

Após ouvir isto e embora estranhando, o convidado achou-se em dívida para com o seu anfitrião e achou por bem pagar-lhe da maneira que lhe era requerido já que de certa forma abusava do prazo da sua boa hospitalidade. Pondo-lhe a mão sobre o ombro, respondeu-lhe:

- Farei como pedes, irmão! Mas deixa que te diga de minha sentença: o teu coração labora em erro se pensa que deve escolher entre esses dois amores – a esposa e a família. Fica, porém, descansado. Averiguarei as inclinações de tua mulher e quase te asseguro que em vão se agita o teu temor.

Os dois amigos selaram o acordo com um aperto de mão e foram dormir. No dia seguinte, pela madrugada, partiu o marinheiro em direcção ao alto mar.
Estando, havia já alguns dias, embarcado e longe de casa, Mário não conseguia conter a sua inquietação e passeava-se no convés à noite, de lá para cá, em vez de dormir. Contemplando o horizonte na direcção da sua terra apertava-se-lhe a garganta e o coração na curiosidade de saber o que por lá se passaria e na impotência de intervir.
Como, entretanto, havia caído doente com febres e delírios, ensimesmado que estava com aquele problema, o capitão desembarcou-o num porto do norte donde, passados alguns dias e já recuperado, apanhou novo navio rumo à sua terra.
Assim que pôs os pés em terra correu para casa e abriu com brusquidão a porta, gritando repetidamente e bem alto pelo nome da mulher. Ninguém respondia. Os quartos estavam vazios. Só as gaivotas se ouviam com os seus gritos cortantes que, embora habituado, agora lhe pareciam tão desconcertantes.
Exausto, puxou de uma cadeira e sentou-se enterrando a cara nas mãos. Depois, lentamente, levantou os olhos vermelhos e humedecidos e foi dar com uma carta sobre a mesa. Era de sua mulher:

Na ausência de Ulisses, para refrear os seus instintos face a um exército de pretendentes, Penélope entregou a totalidade do seu tempo ao laborioso fabrico de uma colcha.
Eu, porém, nunca aprendi costura.

Fim.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Invocaçao a Eros

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
De deleites doces, sinceros
Deixo os mortos e os pacatos
Entrego-me aos gozos severos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
Dos paraísos carnais
O vinho, o fumo e os ais
Os odores que inquietam os tactos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
Fora os ermitérios
Passe-se das palavras aos actos
Abram-se amplos os mistérios
Dancem as leoas e os gatos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos.