sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A balança do medo

A balança do medo é a imaginação
Que nos sustém em levitação
Quando debaixo dos pés
Não há nada senão abismo

Mesmo quando nos foge de repente o chão
A balança do medo é a imaginação
Ou então o duro cinismo

A balança do medo é os deuses e as fadas
Os Apolos, os Cristos, as Ceres
Mas para quem, como eu, os ídolos se esgotaram
A balança do medo é a natureza e as mulheres
A natureza balançante das mulheres

Quero encher destas duas o prato em desequilíbrio
Mas se a primeira é estática e fácil de contemplar
A segunda é esquiva e não pára de me rejeitar
Tornando-me amiúde escravo do seu fascínio

Assim conclui, meus amigos,
Deixem que vos conte este segredo
Que o que equilibra os pratos, a mulher,
Também desequilibra a balança do medo.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O adúltero





Weston







Eu era um adúltero em mente
E, oh! Que alegria!
Sonhar com o instante
Que ninguém me permitia
Eu era um adúltero em mente
E só me ressentia
Não ser um adúltero completamente

Nada isto carregava de nefando pecado
Só coisas belas me atrevia a sonhar
Um joelho despido, um umbigo destapado
Um vestido justo, decotado
Rasgado pelo meu olhar

Eu era um adúltero em mente
E, oh! Que tristeza!
Viver entre os pudicos!
Um dia inclinei-me à minha fraqueza
E revoltaram-se, logo, em sua defesa
Contra mim, os critérios públicos

Maridos irados e puras donzelas
Bois indomesticáveis e ágeis gazelas
O seu inimigo figadal
Encontraram em mim que ousei
Passar do sonho ao real
Do volátil ao carnal
Eu, que do onírico e intangível
Contra tudo e contra todos,
Um dia, me emancipei

Ante toda esta gritaria e comoção
Temendo a sova e a humilhação
Voltei a fingir-me tímido aparente
Regressei ao resguardo da imaginação
Sou hoje, por força e por imposição
Um adúltero que somente
Prevarica na sua mente
Um adúltero que se ressente da doença da ilusão.

domingo, 23 de setembro de 2007

O último homem

Um nicho de seu,
Procura um homem
Uma terra onde ser rei
Suporta os vermes que o comem
Só não suporta ser ninguém

Procura ele uma rainha
Para ocupar, ao seu lado, o trono
E também uma ou outra concubina
Que saiba quem ali domina
Que reconheça a voz ao dono

Erguerá então a sua fortaleza
No mais inalcançável rochedo
E governará com ares de realeza
Suscitando o respeito e o medo

Por esse reino todos porfiamos
Seguindo este ou aquele caminho
Sendo justos ou astutos malandros
Quer acompanhado quer sozinho

A esse reino só um terá direito
Ao morrerem os vermes que nos comem
Conquistando o indizível feito
De se tornar o último homem.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A grande guerra

O problema da guerra
Chegou um dia a todos nós
E da alegria discreta
Passámos à alegria completa
E da infelicidade média
À tristeza atroz

Chegaram os petardos
Libertando-nos dos fardos
Zumbiram, caíram
Destruindo o trabalho
E em uníssono todos rejubilámos:
Não havia mais servidão!

Os petardos
Como moscardos
Zumbiram, caíram, então,
Destruindo os vizinhos
E nós, embora atordoados
Embora um pouco mais sozinhos
Juntos celebrámos:
Não havia mais competição!

Mas os obuses
Das ofuscantes luzes
Zumbiram, caíram,
Estoiraram, levando-nos as pernas
E sem muros nem telhados,
Nem portas nem janelas
Regressados que estávamos
Às frias cavernas
Ingénuos, ainda pensámos:
"Graças a deus! Vivo!"

Foi quando o céu inclemente se rasgou
E de lá, de repente, se precipitou
O arsenal definitivo:
Levou-nos o que nos sobrava, os braços
"Meu deus! Como darei agora abraços"
A quem me libertou de ser cativo?

"A minha alma é uma amálgama de estilhaços
Estou feito aos pedaços
Jazo mas sobrevivo"

Entre quem faz a guerra
Há ponto em comum, assaz
Que guerreando a terra
É maneira de se chegar à paz

A guerra alimenta,
Enriquece e prospera
Tanto quanto atormenta,
Apodrece e degenera

Mas quem nega essa fera
Nega apenas que dentro de si
Se já não chora e já não ri
Estoirou em grande a grande guerra.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Como se adensa o crime

Como se adensa o crime?
O que lhe acrescenta ingrediente?
Como conspira a mente
Para lhe dar o seu aspecto sublime?
Como se transforma um homem num meliante?
Um bom paroquiano num hábil farsante?
Como, per suma, num instante
Se adensa o crime?

No seu lar aconchegado
A Maria põe a mesa
E o Manel, cheio de fraqueza
Após todo o dia a trabalhar
Exige à esposa destreza
Na confecção do manjar

Respinga aquela que não é parva
Que não nasceu para burro de carga
Que se o Manel quer comida
Que vá ele amassar o pão
Mas aquele não vai de meia medida
Levanta alto o bordão
Acaba-lhe ali mesmo com a vida

É presente ao Juiz:
- Porque mataste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor!
Passo a vida a receber ordens
A ser controlado
Não posso consentir, nem pelo mais alto favor
Que na minha casa seja um criado!

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas como se adensa o crime?
Vamos lá explorar!
Como um ser num segundo é pacífico
E no seguinte se põe a altercar
Como atenta uma ovelha
Contra o seu próprio templo?
Vejamos outra cena
A título de exemplo:

O empregado na loja do patrão
Pensa para si na solidão
Na tristeza daquele comércio
Como é injusto que o outro se encha de patacão
Ande por aí jactante como um barão
E este, o que trabalha,
Não veja nem um sestércio

Um dia, decidido
A não fazer mais queixa
Fecha a porta, olha em volta
Deita a mão à caixa

Olha de novo para todo o lado
Apura o total do saqueado
E está Contente porque se decidiu
Das duas opções que a vida lhe deu:
Roubar ou ser roubado

É presente ao juiz:
- Porque roubaste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Trabalho que nem um escravo
Não vejo nem um centavo
Porque me rouba o patrão e é louvado?
Porque roubo eu e sou um horror?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas vamos lá pôr nesta pesquisa mais vontade
A fim de se apurar a verdade
E desvendar como se adensa o crime
Que com os exemplos acima fornecidos
Quase estamos convencidos
Que é exercício sublime

Casa-se a virgem com velha companhia
Com o matrimónio arranjado
E de acordo com o ritual imaculado
Perde, forçada, a essência pia

O velho, que só lhe arrepia
Não possuía esse direito
Vinga-se ela amando jovens de dia
E à noite, negando-lhe o leito

Mas a vida prega partidas
E já namora ela às escondidas
Um jovem oficial de cavalaria
Atiram a um poço o chato do velho
Herdam-lhe o opulento mealheiro
E juntos fazem nova vida

É presente ao juiz:
- Porque mataste ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Se o amor é cego
Porque me forçam ao mesmo?
Obriga o catecismo
A entregarmo-nos sem amor?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho a infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

E agora que estamos na posse de suficientes dados
Para nos sentirmos, com franqueza, deveras chocados
Sabemos que o crime se adensa
Se cumpre e se pensa
Porque a ele somos forçados.

Bela Adormecida

Não posso chamar a este amor "amor"
Não posso chamar a este amor um fogo
Que este amor tem muito de morte
E quando te beijo é a morte que eu como

Não posso chamar a este amor "felicidade"
Não abraço a felicidade se te abraço
Célere passa por nós a melhor idade
É melhor chamar a este amor "fracasso"

Não posso chamar à tua ausência "saudade"
Não posso chamar à tua presença "paixão"
Se não está sinto-me em Liberdade
Se apareces, numa prisão

Acorda ó bela!
Que o Sol da vida se põe cedo
Acorda ó bela!
Antes da noite e do medo
Resgata-te a esse feérico torpor!
Acorda ó bela!
Que depois do Sol só há negro
Não posso chamar a este amor "amor".

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Três Fúrias que és só uma












Amável Erínia
Juro! O teu veneno é o meu preferido
Mas amável Erínia, peço-te
Dá-me hoje folga do maldito

Amável Alecto
Juro! O teu aguilhão é o meu dilecto
Mas amável Alecto, imploro
Poupa-me hoje a esse espeto

Amável Megera
Juro! Os teus gritos são melodia
Mas, amável Megera, por favor
Poupa-me hoje à gritaria

Amável Tisífone
Juro, a tua cólera é-me cara
Mas, amável Tisífone, rogo-te
Solta-me hoje essa amarra

Três Fúrias que és só uma
Três penúrias numa penumbra
Que até de Hércules farias tanso
Poupa-me ao teu amor de catacumba
Resgato-me antes que sucumba
Reinstalo a paz e o descanso

Três Fúrias que és só uma
Três penúrias numa penumbra
Dás-me fogo a ver se amanso
Poupa-me à tua carícia iracunda
Deixo para trás o que se afunda
Subo da escada um outro lanço.

O apátrida



















Carrego em mim uma vontade
Mal compreendida de ser feliz
Uma vontade que não tem a ver
Com ser-se português

Com ser-se português
Que é ser-se triste e explorado
Escravo e mal amado
E não consigo perceber,
Ninguém me diz,
Porque somos um povo
Que não se sabe divertir
Que é falso quando se põe a rir
Com a sua gargalhada insincera
Um risinho nervoso de hiena
Com o infortúnio de alguma Madalena
A quem se desmanchou o prazer

Quero expatriar-me dessa infelicidade nacional
Desse cunho anormal
Que é ser-se português
E ocorre-me que talvez
Tenha sangue bárbaro
De godo, visigodo, eslavo ou de cataro
Sangue celta, que os celtas sabem dançar
Ou sangue brasileiro, que esses sim, sabem amar

Não posso é acreditar que sou português
Porque ao contrario dos meus conterrâneos
Não desejo ser infeliz
Tudo o que faço é com ideia na boa disposição
Encher as canecas, distribuir o pão
E, contudo, levam-me isso a mal
Dai eu duvidar que seja luso de raiz
Porque nunca levaria a mal
Que outro tentasse ser feliz

O meu pai nasceu no Porto
A minha mãe em Odemira
E por isso me admira
Que de luso em mim haja tão pouco
Que sou pragmático e objectivo a felicidade
Que gosto de me rir e, enfim,
Afecto, por dever, a lugubridade
Para não ofender a seriosidade
Que se diz inata ao luso
Por deferência para com o costume e com o uso

O meu avô nasceu em Leiria
A minha avó em Gaia
E tenho congéneres na raia
E na costa vicentina
Por isso não se me descortina
Porque não sou eu lusitano
Porque não quero andar mal
E de mal andar não me ufano

Do sotavento ao barlavento
Espalhou o meu tetravô, rebento
O que lhe valeu o cognome de O Povoador
Do Litoral ao Interior
Multiplicou-se p’lo amor
Mas eu, que partilho a descendência
Não me contento
Em partilhar a mesma dor

Porque se isto de ser-se luso
É cantar o fado
Eu prefiro andar calado
Que não tenho jeito para gemer
Prefiro entregar-me ao prazer
Do que andar p’rai amuado
Não me hão de convencer
A covardemente desistir
Não me hão de persuadir
A fazer de coitado.