sábado, 21 de março de 2009

O Mensageiro Esteta

O mensageiro esteta
Não tem mensagem
Tagarela o pobre poeta
Sobre flores e ramagem

Um sol refulgente ali,
Uma praia infinita além
Uma bela rapariga que sorri
Ai! Sonhando c’o amor d’alguém

Uma e outra vez, o mensageiro esteta
Convoca esta mesma e velha imagem
Convencendo o ignorante, o aprendiz de poeta
De que é nova a sua mensagem

Em mil combinações ele consegue
Arranjar as suas quatro tintas
A rapariga, a praia, o sol refulgente
E o amor. Ai! Que bonitas!

O mensageiro esteta tem cargo público
É mestre em letras, doutorado
E, portanto, não lhe convém cuspir no prato
Que o tem engordado

É assíduo dos concursos literários
E, assaz, premiado
Pelos seus amigos, dromedários
De um extenso califado

Ó mensageiro esteta
Vem cara a cara com a verdade
De que que sóis e praias não fazem um poeta
Nem gritos ocos de “liberdade”!

domingo, 18 de maio de 2008

A arca no sotão

Subi ao sotão e
encontrei uma arca
cuja chave não se queria evidenciar
arca maldita! Rais-ta-parta
dou-lhe um pontapé
que a põe a chiar

Abre, hiante, a grande boca
De couro e tecido, escancarada
e de lá de dentro fita-me o tesouro
uma opulente herança de nada

Máscaras e figurinos,
velharias, monos vários
a sufocar de asma naquele pó
jaquetas de cowboys
e botas de corsários
uma rabeca p'ró só-li-dó

Experimento uma máscara, a medo
que os ácaros me façam presa
e logo surge a estalo de dedo
um vero carnaval de veneza
com cortesãs da realeza

Dançam nos seus espartilhos tira-folêgo
de peitos a soçobrar do decote
e eu sou no meio daquilo tudo, um franganote
que não se contem de surpresa

Fica-me bem esta nova máscara
pois que a vejo a um espelho rachado
estou a sonhar e siderado
só quero acordar acompanhado

Mas àquela festa
já se faziam convidar outros seres
que eu não houvera convocado
esqueletos, fantasmas e outros desmancha-prazeres
bailavam pelo sotão desarrumado

Corri a selar a arca
que não sendo a de Pandora
a breve festa de toda aquela realeza
custou-me um bom trabalho de limpeza
coisa para mais de uma hora.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Indústria

Se as palavras são para dar e vender
se as palavras se vendem
eis a minha oferenda a vós
porque não tenho escolha

Dar uma palavra a quem não a merece,
ou dá-la a quem não a pediu
é como dar um carinho obsoleto
ou que se pressente ameaçador

Por isso as palavras começaram a ser vendidas
para as reconhecerem
para não serem pérolas a porcos

Quem quiser um kilo
vendem-no bem pesado
ou um cabaz de palavras
para oferecer pelo natal

Onde há palavras há vendedores de palavras,
especuladores de palavras,
máquinas de palavras,
licensas para palavrear,
indústrias e fiscais da palavra

O que faz de mim,
no meio disto tudo,
um pirata da palavra:
não tenho licensa
e só digo palavrões.

As minas

Tudo o que gritei para os ouvidos dos moucos
foi tudo o que me revelou a minha cegueira

Tudo o que comi com fome voraz
foi tudo o que se fez sedento de mim

De mim e de outros que não logro em encontrar,
que jazem sepultados sob aço fundido,
levados por ribeiras subterrâneas de palavras
e enchurradas de mal entendidos

Minas de carvão que são minas de tempo mal aproveitado
e onde a tísica se apanha de respirar promessas
e minas de diamantes que gelam e petrificam
o portador da saudade perene

Eu quis cavar com uma picareta
uma saída airosa,
mas perdi demasiado tempo
a enfeitar o túnel.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A boca dos livros

A pilha de livros dá-me aflição,
as extremidades amarelecidas,
páginas que carpem no soalho
lágrimas de heroínas ludibriadas

A enciclopédia sabichona,
e o Decameron hedonista
entram em disputas éticas
numa retórica bovariana

O áquário verte água
sobre a Origem das Espécies
E à Moby Dik furiosa
faz-lhe espécie O Idiota

O nariz sempre no ar, da Bíblia
proclamando-se, arrogante, o livro único
melindra-se com o porte do volumoso
Arquipélago de Gulag

Enquanto a Karenina em três volumes
se inclina docemente
para se encostar ao ombro forte
das Histórias Inquietas

Os Contos Tradicionais
arranham com garras de lobo
a História Universal em 20 fascículos
e esta, que não é um capuchinho vermelho,
que até veio em versão de capa dura,
engendra o Admirável Mundo Novo
procurando resgatar
O povo do Abismo.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Inútil invocar o belo

Sou um criminoso por às vezes
me esquecer do belo
e de por vezes, o relegar às sombras
Então, afogo-me como quem se afoga
com água pelo tornozelo
e vejo ogres ominosos
onde apenas pairam pombas

Isto acontece, talvez, porque ao belo
não basta desejá-lo,
não está sempre ali à mão,
não vem quando se chama,
não se controla, não se comanda
Cumpre-lhe apenas existir
e ser cobiçado pela vontade humana

Por isso é triste todo o que invoca o belo
porque é a ausência dele mesmo nessa oração
Ele não possui sequer a morada que lhe deram
Uma cirurgia de peito aberto
mostra que não mora no coração
Porque o belo é novo rico
que se envergonha das suas origens
e tal como ele, sente nauseas, vertigens
sempre que encara o feio, seu irmão

Por isso, quem sabe isso
não espera mais o belo
Pega em papel de lustro e numa tesoura
e faz uma fantasia de carnaval.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Dioptrias

Quando olho para ti
vejo um medo
E quando olho para ti,
uma esperança
E esse medo e essa esperança fundem-se
no teu olhar quando olhas para mim

Quando olhas para mim
vês um sonho
E quando olhas para mim,
um pesadêlo
Esse pesadêlo pede-te que olhes por mim
e esse sonho que olhemos para o amanhã

Quando olhamos um para o outro
petrificamos
E quando olhamos um para o outro
derretemos
E de repente esquecemos, sonegamos
que há outros que olham para nós.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A besteira








Goya




A besteira desta gente!
A besteira desta gente!
A asneira, a brincadeira e a besteira desta gente!

Como posso andar contente?
Tenho uma visão diferente
Mas não escapo à ratoeira
Da besteira desta gente

Há no mundo inteligente
Quem não vá em pregão de feira
Mas onde nasci há leis p’ra gente
Legitimar toda a besteira

A conversa desta gente
O seu código deprimente
A asinice persistente
Dá comigo em demente

Venham buscar-me p’rós jardins
Do Julinho florido
Para da besteira dos pasquins
Eu andar protegido

Venham buscar-me num cortejo
Numa alegre ambulância
Com sirene e lampejo
De pompa e circunstância

Venham buscar-me para as celas
Do Miguelinho Bombarda
Longe da besteira e das balelas
Da gente que nos aldraba.

domingo, 4 de novembro de 2007

O legado

Quis construir uma casa
Para não termos frio todo o ano
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que me tornasse tirano

Quis construir um hospital
Para mitigar a nossa dor
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que me tornasse ditador

Quis construir uma escola
Para dar futuro às crianças
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que subvertesse as crenças

Quis construir um teatro
Para dar sorriso ao povo
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que te tornasse num bobo

Hoje construo sozinho
O que sem ti nunca estará acabado
E tu sentas-te e olhas escarninho
Gozas o meu labor
E gozarás o meu legado.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Parte pedra (lenga-lenga)











Cava a vala!
Cava a vala!
Eeenche e tapa e cala!
Paga a conta do sossego
Paga a conta de amála
Esta vida mete medo!
Anda! Cala!
Tapa a vala!

Parte pedra!
Parte pedra!
E reeega a ver se medra!
Pega! Leva! Encosta acima!
Vira! Larga! Da colina!
Esta vida: cegarrega!
Escorrega
E parte a perna!

Pica o ponto!
Pica o ponto!
Estás pronto! Pobre tonto!
Atrasado pro recado
Atrasado pro encontro
Esta vida é um achado
Pica o ponto!
Pobre tonto!

Vai e volta!
Vai e volta!
Bate o pé e bate a porta!
Bate o carro na carrinha
Bate o punho na vizinha
Esta vida é uma anedota!
Pica o ponto
e bate a porta!