segunda-feira, 30 de julho de 2007

Os Senhores dos Adormecidos

Os que despejam esta poção na nossa água
Os Senhores dos Adormecidos
Se acordássemos não podiam nada
Contra nós que somos vivos

Os Senhores dos Adormecidos
Não os ricos ou os poderosos
Os meio-homens enganosos
Que amam representar de protector
Infligem-nos uma dose de dor
Para poderem ser o salvador
Dando palmadinhas nas costas
Nos nossos fracturados ossos!
Saboreando-nos, caviar em tostas,
Num reinado de destroços

Os Senhores dos Adormecidos
Nem sempre os públicos ou os famosos
Muitos andam andrajosos
Pobres e mal nutridos
Fazem-se puros, os orgulhosos -
Puros e pervertidos

Os Senhores dos Adormecidos
Cantam a sua perversa cantilena
A de que eu e tu, nascemos
Com a mente demasiado pequena
Para pensarmos por nós mesmos
É, portanto, forçoso, que os deixemos
Infligir-nos a sua culpa, a sua pena
Porque somos fracos e não sabemos

Os Senhores dos Adormecidos
Os de uma cultura, um só credo
Uma só lição, a doutrina do medo
Pretendem determinar o chão onde pisas
Clamam, o teu cérebro é demasiado pequeno
O mundo é mau, monstruoso, um ermo
Que só eles te podem amar como precisas

O Sr. dos Adormecidos
Defenderá com exultação
O seu real reinado de estrume
Elevando-se aos píncaros da indignação
Quando a verdade vem a lume,
Arrastando a tua dignidade na humilhação
Sempre que a mascara sucumbe

Entre os Srs. Dos Adormecidos há duas estirpes
O mosca tsé-tsé e o varejeira verde
Insistem, resistem, a menos que os estripes
Um, adormece-te em pe, como a um bebé
Para o outro, depois, vir comer-te

Os Srs. dos Adormecidos possuem ponto fraco
São só Senhores enquanto tu fores o servo
Acorda, põe-te a milhas, faz-te já ao largo
Pois, só tu lhes garantes a coroa e o ceptro.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Promontório do Presente

Do promontório do presente
Contemplamos o passado
O caminho aberto e o cerrado
O mar encrespado,
A terra, até onde a vista alcança
A escassez e a bonança
Pesados lado a lado
Para onde pende essa balança?

Do promontório do presente –
Todos, um dia, o teremos que subir
Chegados a loucos,
Miopes e moucos,
Os que a si mesmo fingem
Será, então, altura
De dessa alta envergadura
Testarmos a nossa vertigem

Trémulos de mente e de pernas
Há os que cedo se despenham
E que num voo picado se empenham
A lutar com as vagas nada amenas
Sem sereias serenas
Que lhes mitiguem as penas
Tritões, apenas, que os arpeiam

Outros, pouco afoitos,
Não terão sequer coragem de subir
Serão empurrados por esse cabo
A confrontar o passado – os doidos
Na berma, com o vento a bulir
E o vento grita a sua verdade maldita
Terrível de ouvir

Do promontório do presente
Porque até o presente é ilusório
O justificativo escapatório
É preciso ter presente
Quando sentimos que é premente
Para arrumar o desarrumado
Olhar do presente
Para o distante passado

Do promontório do presente
Precisaremos de óculo, de binóculo,
Para sondar o horizonte obscuro?
E será alto o suficiente o babélico observatório
Para observarmos o Ontem pouco abonatório
Sustentando-nos apenas no presente inseguro?

Quem deseja saber escala a sua escarpa
Galga-o a punho, sem bússola ou mapa
Deixa a máscara no primeiro planalto,
O figurino, no segundo
Dá sem fôlego a última braçada
Ergue-se farto de comer o pó e o nada
E do píncaro contempla o mundo.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Mãos inúteis

Mãos inúteis lavam as lágrimas
De crocodilo, inúteis, ofendem os olhos
Mestres hábeis da mascarada
Garras inúteis que atormentam os sonhos

Luvas inúteis constroem castelos
Fortalezas sem fim, inúteis, portanto
Driblam projectos abjectos, secretos
Fúteis, essas membros, urdem segredos
Fazendo do nada outro tanto

Apêndices inúteis de inúteis vozes
Murmurantes, sussurrantes, confidentes
Comprovam: São mais as vozes que as nozes
Batendo com a língua nos dentes

Próteses inúteis estendidas aos céus, rogando
Juntas, tacteando sem tacto, rezando
Ou sem remorso, acenando adeus
Apertando outras próteses, cumprimentando
Esticando o indicador, traindo
Traindo implacavelmente os seus















Dedos compridos, finos
Com unhas cortantes
Que se cravam, libertinos,
Nas costas dos amantes
Dedos negros, suspeitos
Vorazes e delicados
Que se espetam, inquietos
No coração dos amados

Palmas com a linha da vida: longa
A linha do coração: curta
A linha da razão: ausente
E a linha da memória: diminuta
Palmas batendo palmas
À estatura de palmo e meio
Vendo a sombra agigantar-se
Sob a luz dum candeeiro
Palmas, uma salva de palmas
Para essa alma de carroceiro
Vendo a estatura expandir-se
A troco d'algum dinheiro
Nessa dança emulando Circe
Ó mestre títereiro

Suam as mãos hipócritas
Atrás das costas, uma delas, numa figa, aperta-se
Jurando, outra, sobre o peito, pela alma dos finados
Uma faz, diligente, a continência
E a outra nunca se põe na consciência
Quando dispara sobre os condenados

Essas mãos que recebem, que pedem
Que exigem mais do que merecem
Que se vendem imundas nos mercados
Fazem do homem, homúnculo
E dos asnos, doutorados
Dos espertos, o novo mundo
E dos inteligentes, alienados.

sábado, 7 de julho de 2007

O eunuco da mente

Na sua fortaleza forçada permanece
Um eunuco da mente
Irado e descontente
Que à janela de quando em quando aparece
Para dizer ao mundo como se sente

Esse forçado eunuco da mente
Anseia por fecundar um pensamento diferente
No estéril óvulo da imaginação dolente
Dos outros eunucos da mente, voluntários
Vive, no entanto, como os rosários
No pescoço das beatas pendente
Como o mais pudendo dos emissários

Vive contrafeito
Pois não lhe assiste esse direito
De ser livre e libertino
Para o ventre e para o peito
Procriando as ideias dum novo destino

Chora o eunuco da mente,
Na sua torre de marfim, implacável
Não pode descer, não o consente
O sacro, o puro, o venerável















Do seu marmóreo túmulo vertical
Avista horizontes que não pode comunicar
Está forçado esse eunuco, num pedestal
Preferia ser homem e poder pecar

O eunuco da mente está irado:
“Tirem-me da mente esse cinto da castidade!”
Sobra a semente do seu pecado não consumado
Para fecundar nenhuma verdade

Um dia descerá o eunuco da mente
Um dia, promete, um dia
Dessa torre de marfim, pétrea, fria
E expulsará o celibato num repente
Para fecundar a mãe verdade, um dia
Estuprando a sua essência pia.

domingo, 1 de julho de 2007

Oeiras, um retrato







Foto: Portuguese_eyes







Os figos quase em Agosto, quase violetas
O seu perfume, no ar, um perfume caro
Nevam dos choupos os algodões – ascetas –
- Ascendendo aos céus de Santo Amaro

As ameixas brotando sanguíneas, rutilantes
No monumento ao Ultramar, aos seus mortos
Escorre-nos pelos lábios o seu sumo – bacantes –
- Celebrando c’ o sangue os heróicos esforços

Os jardins ajardinados em disposição cuidada
Por cem mãos zelosas de esmero e veludo
Nos canteiros, ei-los, a flor e a ramada
Da Páscoa ao Inverno, do Verão ao Entrudo

Uma brisa avisa, uma maresia na rua
Uma valsa quente/fria onde uma balsa desmaia
O mar marulha onde o Tejo desagua
E a balsa, bem-vinda, vem dar à nossa praia

Galopam os corcéis, na estação, as garças
Nos parques, as crianças, findando as brincadeiras
Fazem birras aos pais em cândidas farsas
Implorando-lhes: não deixem a Vila de Oeiras!

Por toda esta vida vidrante vibra a feira,
A exposição, a festa, o fabuloso arraial
Corre pelo quadrante a fascinante ribeira
Da Laje ao Atlântico, através do Pombal.