domingo, 23 de dezembro de 2007

Inútil invocar o belo

Sou um criminoso por às vezes
me esquecer do belo
e de por vezes, o relegar às sombras
Então, afogo-me como quem se afoga
com água pelo tornozelo
e vejo ogres ominosos
onde apenas pairam pombas

Isto acontece, talvez, porque ao belo
não basta desejá-lo,
não está sempre ali à mão,
não vem quando se chama,
não se controla, não se comanda
Cumpre-lhe apenas existir
e ser cobiçado pela vontade humana

Por isso é triste todo o que invoca o belo
porque é a ausência dele mesmo nessa oração
Ele não possui sequer a morada que lhe deram
Uma cirurgia de peito aberto
mostra que não mora no coração
Porque o belo é novo rico
que se envergonha das suas origens
e tal como ele, sente nauseas, vertigens
sempre que encara o feio, seu irmão

Por isso, quem sabe isso
não espera mais o belo
Pega em papel de lustro e numa tesoura
e faz uma fantasia de carnaval.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Dioptrias

Quando olho para ti
vejo um medo
E quando olho para ti,
uma esperança
E esse medo e essa esperança fundem-se
no teu olhar quando olhas para mim

Quando olhas para mim
vês um sonho
E quando olhas para mim,
um pesadêlo
Esse pesadêlo pede-te que olhes por mim
e esse sonho que olhemos para o amanhã

Quando olhamos um para o outro
petrificamos
E quando olhamos um para o outro
derretemos
E de repente esquecemos, sonegamos
que há outros que olham para nós.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A besteira








Goya




A besteira desta gente!
A besteira desta gente!
A asneira, a brincadeira e a besteira desta gente!

Como posso andar contente?
Tenho uma visão diferente
Mas não escapo à ratoeira
Da besteira desta gente

Há no mundo inteligente
Quem não vá em pregão de feira
Mas onde nasci há leis p’ra gente
Legitimar toda a besteira

A conversa desta gente
O seu código deprimente
A asinice persistente
Dá comigo em demente

Venham buscar-me p’rós jardins
Do Julinho florido
Para da besteira dos pasquins
Eu andar protegido

Venham buscar-me num cortejo
Numa alegre ambulância
Com sirene e lampejo
De pompa e circunstância

Venham buscar-me para as celas
Do Miguelinho Bombarda
Longe da besteira e das balelas
Da gente que nos aldraba.

domingo, 4 de novembro de 2007

O legado

Quis construir uma casa
Para não termos frio todo o ano
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que me tornasse tirano

Quis construir um hospital
Para mitigar a nossa dor
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que me tornasse ditador

Quis construir uma escola
Para dar futuro às crianças
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que subvertesse as crenças

Quis construir um teatro
Para dar sorriso ao povo
Pedi-te ajuda, negaste-ma
Temendo que te tornasse num bobo

Hoje construo sozinho
O que sem ti nunca estará acabado
E tu sentas-te e olhas escarninho
Gozas o meu labor
E gozarás o meu legado.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Parte pedra (lenga-lenga)











Cava a vala!
Cava a vala!
Eeenche e tapa e cala!
Paga a conta do sossego
Paga a conta de amála
Esta vida mete medo!
Anda! Cala!
Tapa a vala!

Parte pedra!
Parte pedra!
E reeega a ver se medra!
Pega! Leva! Encosta acima!
Vira! Larga! Da colina!
Esta vida: cegarrega!
Escorrega
E parte a perna!

Pica o ponto!
Pica o ponto!
Estás pronto! Pobre tonto!
Atrasado pro recado
Atrasado pro encontro
Esta vida é um achado
Pica o ponto!
Pobre tonto!

Vai e volta!
Vai e volta!
Bate o pé e bate a porta!
Bate o carro na carrinha
Bate o punho na vizinha
Esta vida é uma anedota!
Pica o ponto
e bate a porta!

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Paciência

Que paciência tens tu para me escutar a mim
Para me ouvir o queixume e o lamuriar
Juro que se fosse eu que me ouvisse assim
Não teria paciência para me escutar

Que paciência tens tu para me escutar a mim
Para me ouvir a tristeza e o refilar
Juro que se fosse eu que me ouvisse assim
Já me tinha mandado passear

Escutas-me os desatinos, a alma às avessas
E todas essas coisas confessas
Aplacas com os teus ouvidos cordatos
As dores, os achaques, os terrores nocturnos
Os cheliques, os tiques, os pânicos profundos
Mitigas com os teus ouvidos sensatos

Ó ouvidos abençoados que tu tens
Ó boca perfeita para nunca pronunciar o demais
Queria ouvir-me como só tu o sabes fazer
Calado para os meus próprios ais.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Os homens

Os homens de toga, os homens de armadura
Os homens de fato, gravata e sinecura
Certificam-se de que se afoga
Toda e qualquer prova
De que para os outros homens a vida é amargura

Os homens de toga, os homens de armadura
Os homens de fato, gravata e sinecura
São a voz que advoga
O fim da derrota
São a voz que outorga o persistir da agrura

Mas para os outros homens, os homens da amargura
Os indigentes estropiados de cultura
Resta-lhes desejar
Possam os seus filhos, um dia, se tornar
Homens de toga, homens de armadura
Homens de fato, gravata e sinecura.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A balança do medo

A balança do medo é a imaginação
Que nos sustém em levitação
Quando debaixo dos pés
Não há nada senão abismo

Mesmo quando nos foge de repente o chão
A balança do medo é a imaginação
Ou então o duro cinismo

A balança do medo é os deuses e as fadas
Os Apolos, os Cristos, as Ceres
Mas para quem, como eu, os ídolos se esgotaram
A balança do medo é a natureza e as mulheres
A natureza balançante das mulheres

Quero encher destas duas o prato em desequilíbrio
Mas se a primeira é estática e fácil de contemplar
A segunda é esquiva e não pára de me rejeitar
Tornando-me amiúde escravo do seu fascínio

Assim conclui, meus amigos,
Deixem que vos conte este segredo
Que o que equilibra os pratos, a mulher,
Também desequilibra a balança do medo.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O adúltero





Weston







Eu era um adúltero em mente
E, oh! Que alegria!
Sonhar com o instante
Que ninguém me permitia
Eu era um adúltero em mente
E só me ressentia
Não ser um adúltero completamente

Nada isto carregava de nefando pecado
Só coisas belas me atrevia a sonhar
Um joelho despido, um umbigo destapado
Um vestido justo, decotado
Rasgado pelo meu olhar

Eu era um adúltero em mente
E, oh! Que tristeza!
Viver entre os pudicos!
Um dia inclinei-me à minha fraqueza
E revoltaram-se, logo, em sua defesa
Contra mim, os critérios públicos

Maridos irados e puras donzelas
Bois indomesticáveis e ágeis gazelas
O seu inimigo figadal
Encontraram em mim que ousei
Passar do sonho ao real
Do volátil ao carnal
Eu, que do onírico e intangível
Contra tudo e contra todos,
Um dia, me emancipei

Ante toda esta gritaria e comoção
Temendo a sova e a humilhação
Voltei a fingir-me tímido aparente
Regressei ao resguardo da imaginação
Sou hoje, por força e por imposição
Um adúltero que somente
Prevarica na sua mente
Um adúltero que se ressente da doença da ilusão.

domingo, 23 de setembro de 2007

O último homem

Um nicho de seu,
Procura um homem
Uma terra onde ser rei
Suporta os vermes que o comem
Só não suporta ser ninguém

Procura ele uma rainha
Para ocupar, ao seu lado, o trono
E também uma ou outra concubina
Que saiba quem ali domina
Que reconheça a voz ao dono

Erguerá então a sua fortaleza
No mais inalcançável rochedo
E governará com ares de realeza
Suscitando o respeito e o medo

Por esse reino todos porfiamos
Seguindo este ou aquele caminho
Sendo justos ou astutos malandros
Quer acompanhado quer sozinho

A esse reino só um terá direito
Ao morrerem os vermes que nos comem
Conquistando o indizível feito
De se tornar o último homem.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A grande guerra

O problema da guerra
Chegou um dia a todos nós
E da alegria discreta
Passámos à alegria completa
E da infelicidade média
À tristeza atroz

Chegaram os petardos
Libertando-nos dos fardos
Zumbiram, caíram
Destruindo o trabalho
E em uníssono todos rejubilámos:
Não havia mais servidão!

Os petardos
Como moscardos
Zumbiram, caíram, então,
Destruindo os vizinhos
E nós, embora atordoados
Embora um pouco mais sozinhos
Juntos celebrámos:
Não havia mais competição!

Mas os obuses
Das ofuscantes luzes
Zumbiram, caíram,
Estoiraram, levando-nos as pernas
E sem muros nem telhados,
Nem portas nem janelas
Regressados que estávamos
Às frias cavernas
Ingénuos, ainda pensámos:
"Graças a deus! Vivo!"

Foi quando o céu inclemente se rasgou
E de lá, de repente, se precipitou
O arsenal definitivo:
Levou-nos o que nos sobrava, os braços
"Meu deus! Como darei agora abraços"
A quem me libertou de ser cativo?

"A minha alma é uma amálgama de estilhaços
Estou feito aos pedaços
Jazo mas sobrevivo"

Entre quem faz a guerra
Há ponto em comum, assaz
Que guerreando a terra
É maneira de se chegar à paz

A guerra alimenta,
Enriquece e prospera
Tanto quanto atormenta,
Apodrece e degenera

Mas quem nega essa fera
Nega apenas que dentro de si
Se já não chora e já não ri
Estoirou em grande a grande guerra.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Como se adensa o crime

Como se adensa o crime?
O que lhe acrescenta ingrediente?
Como conspira a mente
Para lhe dar o seu aspecto sublime?
Como se transforma um homem num meliante?
Um bom paroquiano num hábil farsante?
Como, per suma, num instante
Se adensa o crime?

No seu lar aconchegado
A Maria põe a mesa
E o Manel, cheio de fraqueza
Após todo o dia a trabalhar
Exige à esposa destreza
Na confecção do manjar

Respinga aquela que não é parva
Que não nasceu para burro de carga
Que se o Manel quer comida
Que vá ele amassar o pão
Mas aquele não vai de meia medida
Levanta alto o bordão
Acaba-lhe ali mesmo com a vida

É presente ao Juiz:
- Porque mataste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor!
Passo a vida a receber ordens
A ser controlado
Não posso consentir, nem pelo mais alto favor
Que na minha casa seja um criado!

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas como se adensa o crime?
Vamos lá explorar!
Como um ser num segundo é pacífico
E no seguinte se põe a altercar
Como atenta uma ovelha
Contra o seu próprio templo?
Vejamos outra cena
A título de exemplo:

O empregado na loja do patrão
Pensa para si na solidão
Na tristeza daquele comércio
Como é injusto que o outro se encha de patacão
Ande por aí jactante como um barão
E este, o que trabalha,
Não veja nem um sestércio

Um dia, decidido
A não fazer mais queixa
Fecha a porta, olha em volta
Deita a mão à caixa

Olha de novo para todo o lado
Apura o total do saqueado
E está Contente porque se decidiu
Das duas opções que a vida lhe deu:
Roubar ou ser roubado

É presente ao juiz:
- Porque roubaste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Trabalho que nem um escravo
Não vejo nem um centavo
Porque me rouba o patrão e é louvado?
Porque roubo eu e sou um horror?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas vamos lá pôr nesta pesquisa mais vontade
A fim de se apurar a verdade
E desvendar como se adensa o crime
Que com os exemplos acima fornecidos
Quase estamos convencidos
Que é exercício sublime

Casa-se a virgem com velha companhia
Com o matrimónio arranjado
E de acordo com o ritual imaculado
Perde, forçada, a essência pia

O velho, que só lhe arrepia
Não possuía esse direito
Vinga-se ela amando jovens de dia
E à noite, negando-lhe o leito

Mas a vida prega partidas
E já namora ela às escondidas
Um jovem oficial de cavalaria
Atiram a um poço o chato do velho
Herdam-lhe o opulento mealheiro
E juntos fazem nova vida

É presente ao juiz:
- Porque mataste ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Se o amor é cego
Porque me forçam ao mesmo?
Obriga o catecismo
A entregarmo-nos sem amor?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho a infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

E agora que estamos na posse de suficientes dados
Para nos sentirmos, com franqueza, deveras chocados
Sabemos que o crime se adensa
Se cumpre e se pensa
Porque a ele somos forçados.

Bela Adormecida

Não posso chamar a este amor "amor"
Não posso chamar a este amor um fogo
Que este amor tem muito de morte
E quando te beijo é a morte que eu como

Não posso chamar a este amor "felicidade"
Não abraço a felicidade se te abraço
Célere passa por nós a melhor idade
É melhor chamar a este amor "fracasso"

Não posso chamar à tua ausência "saudade"
Não posso chamar à tua presença "paixão"
Se não está sinto-me em Liberdade
Se apareces, numa prisão

Acorda ó bela!
Que o Sol da vida se põe cedo
Acorda ó bela!
Antes da noite e do medo
Resgata-te a esse feérico torpor!
Acorda ó bela!
Que depois do Sol só há negro
Não posso chamar a este amor "amor".

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Três Fúrias que és só uma












Amável Erínia
Juro! O teu veneno é o meu preferido
Mas amável Erínia, peço-te
Dá-me hoje folga do maldito

Amável Alecto
Juro! O teu aguilhão é o meu dilecto
Mas amável Alecto, imploro
Poupa-me hoje a esse espeto

Amável Megera
Juro! Os teus gritos são melodia
Mas, amável Megera, por favor
Poupa-me hoje à gritaria

Amável Tisífone
Juro, a tua cólera é-me cara
Mas, amável Tisífone, rogo-te
Solta-me hoje essa amarra

Três Fúrias que és só uma
Três penúrias numa penumbra
Que até de Hércules farias tanso
Poupa-me ao teu amor de catacumba
Resgato-me antes que sucumba
Reinstalo a paz e o descanso

Três Fúrias que és só uma
Três penúrias numa penumbra
Dás-me fogo a ver se amanso
Poupa-me à tua carícia iracunda
Deixo para trás o que se afunda
Subo da escada um outro lanço.

O apátrida



















Carrego em mim uma vontade
Mal compreendida de ser feliz
Uma vontade que não tem a ver
Com ser-se português

Com ser-se português
Que é ser-se triste e explorado
Escravo e mal amado
E não consigo perceber,
Ninguém me diz,
Porque somos um povo
Que não se sabe divertir
Que é falso quando se põe a rir
Com a sua gargalhada insincera
Um risinho nervoso de hiena
Com o infortúnio de alguma Madalena
A quem se desmanchou o prazer

Quero expatriar-me dessa infelicidade nacional
Desse cunho anormal
Que é ser-se português
E ocorre-me que talvez
Tenha sangue bárbaro
De godo, visigodo, eslavo ou de cataro
Sangue celta, que os celtas sabem dançar
Ou sangue brasileiro, que esses sim, sabem amar

Não posso é acreditar que sou português
Porque ao contrario dos meus conterrâneos
Não desejo ser infeliz
Tudo o que faço é com ideia na boa disposição
Encher as canecas, distribuir o pão
E, contudo, levam-me isso a mal
Dai eu duvidar que seja luso de raiz
Porque nunca levaria a mal
Que outro tentasse ser feliz

O meu pai nasceu no Porto
A minha mãe em Odemira
E por isso me admira
Que de luso em mim haja tão pouco
Que sou pragmático e objectivo a felicidade
Que gosto de me rir e, enfim,
Afecto, por dever, a lugubridade
Para não ofender a seriosidade
Que se diz inata ao luso
Por deferência para com o costume e com o uso

O meu avô nasceu em Leiria
A minha avó em Gaia
E tenho congéneres na raia
E na costa vicentina
Por isso não se me descortina
Porque não sou eu lusitano
Porque não quero andar mal
E de mal andar não me ufano

Do sotavento ao barlavento
Espalhou o meu tetravô, rebento
O que lhe valeu o cognome de O Povoador
Do Litoral ao Interior
Multiplicou-se p’lo amor
Mas eu, que partilho a descendência
Não me contento
Em partilhar a mesma dor

Porque se isto de ser-se luso
É cantar o fado
Eu prefiro andar calado
Que não tenho jeito para gemer
Prefiro entregar-me ao prazer
Do que andar p’rai amuado
Não me hão de convencer
A covardemente desistir
Não me hão de persuadir
A fazer de coitado.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

As comadres

Quando as comadres se juntam a um canto
E soltam as línguas com um quilómetro
Do nada urdem, num instante, um manto
Bordado de escândalo e de assombro

Entretidas esmiúçam as vidas
Condimentando-as com muito sal
E ficam deveras divertidas
Apontando a raiz do mal

Ele é aquele vizinho que trai a mulher
E aquela mulher que trai o vizinho
E aquele, um chupista! Anda de choffeur!
E aqueloutro, um incapaz, o pobrezinho!

Quando as comadres se juntam a um canto
A sua finalidade é bem sabida
Cheias de asco, apontam aos outros o tanto
Que falta à sua própria vida

É uma felicidade quando uma vê a outra
Apressam-se a pôr a conversa em dia
E sentem-se mais limpas, com nova roupa
Maldizendo o cunhado, o genro, a tia

Mas se não há nada para falar
Ai! Que não chegue esse terrível segundo!
É preciso, então, inventar
Calúnia que as desvie do seu risível mundo

“Olha aquela! De mini-saia! Uma porca!
Olha aquele! De carro novo! Um canastrão!
Aquele miúdo, pobre coitado, um idiota!
Os pais não lhe deram educação?”

Quando as comadres se juntam a um canto
As cabeças rolam por aí além
Da cave esquerda ao terceiro direito
Não escapo eu, não escapa ninguém.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Uma mulher controla

Uma mulher controla
Elevando a bitola
Uma mulher controla
Exigindo-te esmola

Fazendo-te saltar a mola
Tocando-te como uma pianola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

E assim que tentas recuperar parte do teu reinado
Logo, de misoginia, és prontamente acusado
Porque tratando-te como um estarola
Levando-te fechado dentro da sacola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controla chorando,
Implorando-te, nua
Compadecendo-te, amolecendo-te
Com a sua natureza crua
E quando finalmente a crise se atenua
Vês que afinal era só uma graçola
Porque, na verdade,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

E assim que tentas obter, do paraíso, um bocado
Logo, de machismo, és imediatamente acusado
A tua virilidade torna-se uma piada farsola
A tua inteligência, uma anedota de corredor de escola
Porque, afinal,
Uma mulher controla
Uma mulher controla













Uma mulher controla dizendo:
“Eu não consigo! Eu sou frágil!
Explica-me outra vez!”
E quando te cansas de explicar os porquês
Diz: “Eu já sabia!”
Com o ar mais inocente e mais cortês
Com um ar que te desafia
E tu controlas a indignação que te empola
Porque, no fundo,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Mas se lhe exiges um pretexto para os seus actos
és escandalosamente acusado de maus-tratos
E só há uma razão para a angústia que te assola
A de que, da biqueira do sapato ao alto da gola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controla
Com o seu ímpeto tagarela
Saturando-te com paleio
Sobre a vida dela
Vira o disco e toca o mesmo
Como uma eterna grafonola
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Mas se lhe pedes o silêncio, um merecido intervalo
Acusa-te de nunca ouvires o seu sincero abalo
Ofende-se, comove-se
E a lágrima pelo seu rosto rola
Porque, verifica-se,
Uma mulher controla
Uma mulher controla

Uma mulher controlou
Quando te pôs no mundo, como mãe
Controlar-te-á, ainda, uma mulher
Quando fores para o além
Herdando a tua riqueza
Que do árduo trabalho provém
Passeando diamantes
Controlando novos amantes
Enquanto o teu caixão, na lama, se atola
Porque, no fim de tudo,
É sabido, neste mundo
Uma mulher controla.

sábado, 25 de agosto de 2007

Lenir o cansaço de existir

Que seria da existência
Sem os vulgos prazeres?
Suportaríamos os deveres
Os pesados afazeres
Sem perder a paciência?
O que fariamos com a modorra?
Caros amigos, tenham paxorra
É preciso lenir o cansaço de existir

Já não posso com os pés e as mãos de tanto bulir
É preciso lenir o cansaço de existir

Os doces de alcova,
Os vícios de intervalo
Não existe esse regalo
Para que suportemos a caminhada?
Onde cabe nisto tudo a culpa?
Quem inventou essa desculpa
Para a grei andar domada?

Já não posso com a cabeça, doi-me a voz de tanto discutir
É preciso lenir o cansaço de existir

Não será um insulto à existência
Frustrarmos os prazeres
Com que ela nos dotou?
Digo isto porque se quedou,
O nosso corpo, há dois mil anos,
Onde um falso celibatário andou
Entre os judeus e os romanos
Pregando a sua ingerência

Oxalá seja mais leve o longínquo devir
É preciso lenir o cansaço de existir

Não há castidade pura
Que não seque ou murche em duas gerações
Como se vive, depois, sem recordações
Da perda dessa candura?
É para inventariar o pecado
Que os céus são extensos
E os seus amanuenses – anjos pretensos
Mas há dois milénios que no céu é feriado
E de todos os sofredores
Só Job foi indemnizado

Já não tenho forças nem para tossir
É preciso lenir o cansaço de existir

Como? Preguiça é crime?
Mas há lá prática mais sublime
Para espicaçar a criatividade!
Não nos criou Deus no princípio
E descansa há uma eternidade?
Dotou-nos da sua culpa danada
Encheu-nos de fome e de pancada
E, desde então,
Nunca mais fez nada

Não há nenhum deus que me venha acudir
É preciso lenir o cansaço de existir.

A falsa antítese: moral e prazer

Quem corta uma mão para que
Não estorve a acção da outra?
Quem fura de propósito uma vista
Para ver melhor da que sobra?
Quem persegue essa insana obra?
Quem se abstém do prazer, para ser virtuoso
E sendo virtuoso se esquece de ser feliz?
Quem ignora o que o seu corpo diz
E se obceca a controlá-lo?
Quem abertamente o despreza
Procurando amá-lo?
Quem é o infeliz
Que se compraz em castrá-lo?
Quem é que, entre vós,
De vontade própria abafa a sua voz?
Quem é que se tem por meretriz
Quando por um segundo se descuida
Pensando em jogos pueris?

Se és vós, deixai-me dar-vos um conselho:
Assim jamais chegarás a velho!
Ética não é antítese de prazer carnal
O mais completo eudomonismo
Encerra em si mesmo um hedonismo
Mas vós preferis
Torcer, ao prazer, o nariz
Ver em todo o lado... o Mal.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Paralelismos aos dias da ira

Nos dias da ira a minha vontade expira
Só penso em destruir
Corro como louco como o bruto Orinoco
- O Tejo não, que o seu tormento é rouco –
Um tritão sem tridente
No fundo do Guadalquivir
O Etna, deixando a fase latente
Após muitos séculos dormente
Quer exercitar os membros, expandir
A sua cratera é uma insalubre fossa demente
Quer atirar connosco ao nadir

Há na Manchúria taigas perversas
Geadas agrestes, avessas
À ideia do homem existir
Sou, então, como uma delas
Dessas que pintadas em telas
Parecem da moldura querer se evadir
Convoco a neve à galeria
Minhas chuvas são uma antítese da alegria
E os meus ventos sombras do devir

Nem em Leiria os pinhais mansos, de pinheiros bravos
Nem em Monchique os sobreiros velhos, domesticados
Encontro paralelismos para os meus dias da ira
Só os pólos austeros, habitados
De bestas e demónios alados
Ombreiam com os desacatos provocados
Pelos meus dias da ira

No fundo dos mares, as moreias repelentes
E os tubarões de dentes salientes
Incutindo fé aos medrosos crentes
Raias eléctricas e leviatans
Que desacreditam os amanhãs
São, ao meu lado, umas bonequinhas de vestir
Os elefantes indianos,
Os tigres comedores de humanos
Os bárbaros inumanos de Alcácer-Quibir
Arrancam-me quando muito um bocejo de dormir
Não há na natureza
Uma imagem que com franqueza
Me permita transmitir
O que nesses dias é a minha destreza na vontade de destruir

Contudo, tu que me vês assim
Tu, que já me viste como os lagos da Baviera
Pacífico, parado, como as neves da serra
Um Atacama onde a areia se não ergue
Um estreito de Bering sem iceberg
Tu que me conheces como ninguém
Olhas para mim, para o meu ar irado
E não te pareço mais que um gatinho assustado
Perseguindo obsessivamente a sua cauda tosca
E sabes com uma sabedoria de Matusalém
Que não meto medo a ninguém
Que não faço mal nem a uma mosca.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Os neo-helenos

O que nos oferecem estes tempos
Que nos convençam a ficar?
O que neles me persuade?
A ideia de liberdade?
A sua atmosfera de lupanar?
Mas se tudo isso é volátil e eu não lhe posso tocar!

O que me oferecem estes tempos, digam-me,
Que me persuade a não partir?
Dos prazeres, das alegrias colho os restos
As flores, se as pego, têm espinhos funestos,
Sangram a borbotos minhas mãos sobre os cardos
Os regatos, secos se os alcançamos,
Estagnados, cheios de moscardos,
Desonestos, desumanos
Brilham apenas na miragem,
Na vontade de os alcançarmos

As florestas são de vidro
As chuvas, de pedra da Manchúria
As gentes, estátuas de Policleto
Incentivando-nos à penúria
Serei turista convencido
Pelo colorido da brochura,
Pela beleza estática e plana do panfleto?
Se sim, abdico agora mesmo da procura
É ao olvídio que eu me remeto

Mas digam-me, o que me oferecem estes tempos?
O que me dão eles que me sussurre:
“Não te vás ainda.”?
O que me dão que perdure,
Que me alimente e que me cure?
As obras piramidais,
Os constructos monumentais,
As mil maneiras de saciar a fome que não finda?
Dão-me os tempos o que apregoam
Os convincentes comerciais:
Uma lata de feijão pela mão de uma modelo linda?

Quem vive o que se vive no refrão das canções,
Os ais, suspiros, todas as emoções?
Quem o tem em demasia que mo faça ter de somenos?
E são eficazes esses venenos?
Quem experimentou já essas poções?
Que intervale as suas pulsões!
Que desça ao Inferno dos terrenos!
Para me encaminhar ao Olimpo dos neo-helenos!

O herói promissor

Chorar não choro
Que as tintas dissolvem
Chorar não choro
Não dar prazer aos que me comem
Chorar não choro
Riposto c’a histrionia
Rir – só com o fracasso
Sim, sou um palhaço
Mas não por alegria

A rir por rir
Não me obrigarás
Andar às arrecuas como Satanás
Sorrir por sorrir
Porquê? Não sou um Vizir
Não tenho haréns como os Paxás
Nem a chorar nem a rir
Só para te divertir
Como me sabes me acharás

Carrancudo, taciturno
Macambúzio como se lhe devessem o mundo
Enjoado, calado e circunspecto
Possuo um tal aspecto
Que ao passarem por mim, as crianças
Como que trespassadas por lanças
Gritam com horror profundo:
“Meu Deus! Que homem aquele! Q’horror! Doente e imundo!”

É por capricho que não mudo
Por teimosia que não sorrio
Quero-me assim carrancudo
Para afastar de mim o mundo
E todo o seu veneno frio

É por casmurrice inveterada
E se cedo à gargalhada
É só quando algum dos vossos heróis
Hercúleo e de negros caracóis
Se afoga, drasticamente, no rio

Ouço-vos então, as lágrimas, as histórias
Da bela infância roubada
Como um dia carpiram por mim
Enquanto nesse rio eu me afogava
Hercúleo e de negros caracóis
Como o mais promissor dos heróis
Eu ia ao fundo e vocês: nada

De bom grado daria a mão a esse afogado
Se soubesse que salvá-lo, ressuscitá-lo,
Não o traria à vossa companhia
Como quando me resgataram a esse lago
Depois de me terem empurrado
E entre-dentes me gozavam, encharcado
E eu sorria, e sorria

Declarei, desde então, o fim do sorriso e das lágrimas
Arranquei todas essas páginas
Os sucessivos banhos frios
Rosno, tenho raiva, mostro-vos os dentes
Quero-vos ao longe, aos contentes
Com os vossos afogados e os vossos rios

E se me achais triste, soturno, descontente
Mal desafogado, amargurado, cheio de dor
Sabei que rejubila a minha mente
Por não ser mais o vosso herói promissor.

sábado, 4 de agosto de 2007

O ausente

Um homem de meia-idade, Mário Manso, tomou-se de amores por uma mulher de uma aldeia vizinha. Essa mulher era bela, da sua geraçao, e havia permanecido solteira por ser muito independente e não aceitar que qualquer um mandasse nela. Os dois casaram-se e foram viver para casa dele, apesar de muito o haverem aconselhado a não o fazer.

- É mulher ruim! Foi cortesã de muitos e acabou desposada de nenhum! Nunca se interessou pelas lides da casa, não sabe sequer costurar!

Protestaram alguns familiares que asseveravam apenas querer o seu bem. Porém, do seu bem sabia ele e não quis dar ouvidos a vozes soltas, até porque aquela fora a única mulher, entre várias, que o havia resgatado a um descontentamento incompreensível que muitos anos grassara dentro de si.
Por dois anos o homem e a mulher se entenderam naquela casa levando vida leve e feliz. Ele, porém, era marinheiro da marinha mercante e andava embarcado uma metade do ano para voltar para junto dela a segunda metade. Ora, nesses dois anos, das duas vezes que regressou à aldeia vindo de mar, lhe foram as vozes soltas adverti-lo de que a esposa, durante a sua ausência, se portava mal relativamente ao laço de conjugalidade. Por duas vezes o Mário Manso desacreditou essas vozes dando apenas ouvidos à sua consciência e às evidências da deferente e carinhosa atitude da sua mulher para com ele.

- É um crime e uma perfídia que envenenem a mente de um homem contra a sua maior e mais querida protectora! - Gritou-lhes e virou as costas a essas vozes fátuas tendo, desse dia em diante, cortado relações com a sua aldeia. Ficando triste e zangado por haver cortado os laços com os seus irmãos, primos e muitos familiares, que perfaziam a totalidade dos habitantes da aldeia, consolou-o a mulher:

- Somente a ti eu pertenço. Digo-te que é precisamente por ter sido habituada a tentações que as aprendi a declinar. Pelo contrário, as tuas irmãs, cunhadas e primas, que por falta de formosura nunca foram tentadas e por obrigação se casaram… elas, sim, muito mais depressa se entregariam aos falsos elogios de um estranho!

Cativado pela beleza e força interior da sua mulher o marinheiro deitava a cabeça no seu regaço, sentindo-se triste mas algo confortado.

- Como podem eles ver crime e sujidade onde tão claramente eu vejo beleza e força?

E perguntando-se isto, adormecia de cansaço pela sua mágoa, com a mulher entrelaçando os dedos no seu cabelo.
Chegado o dia em que teve de voltar a partir para o mar, abraçou e beijou a mulher no porto, frente à grande nau, e os olhos dele estavam humedecidos com lágrimas. A mulher, no entanto, fez como se ignorasse a desconfiança que ele assim lhe demonstrava e encorajou-o.

- Vá, meu esposo! Leva-me contigo neste medalhão e jamais estaremos longe um do outro.

O Mário Manso inclinou a cabeça e ela colocou-lhe o fio com o medalhão em volta do pescoço, ao que após isto ele se afastou com ombros e cabeça descaídos e andar pesado em direcção ao cais de embarque.

Enquanto andava no alto mar o homem era de poucas falas mas muito respeitado pela sua capacidade de trabalho.
Um dia, no meio do Oceano, tendo acabado a sua labuta, olhava contemplativamente o horizonte e pensava na sua esposa quando um estranho se aproximou. Este era um jovem invulgarmente sadio e belo que tendo-se apresentado como seu novo colega assim lhe falou:

- Aí, nessa direcção para onde olhais conheço eu uma bela terra! As vinhas são particularmente resplandecentes e as casas caiadas têm um ar de neve, as mulheres são rosadas e roliças e as solteiras usam lenços verdes na fronte para se indicarem aos pretendentes. Lá para os fins de Março os habitantes reúnem-se todos numa gruta junto ao mar e oram ao deus touro e quando o céu adquire certa cor rosada, como a do primeiro vinho, eles sabem que a colheita vai ser boa. Celebram-se, então, vinte e dois dias e vinte e duas noites de festa e as moças casadoiras fazem-se convidar para bailar saltitando e dando pequenos guinchos como cotovias na alvorada.

Ouvindo isto e meio pasmado, exclamou o marinheiro:

- Mas, diabos! Se não é da minha própria terra que falas!

Tratava-se, com efeito, da sua terra natal, que o jovem havia por uma vez visitado. E muitos dias se seguiram em que os dois, após a labuta, se reuniam naquele convés para recordar como era bela a terra e caricatos os seus habitantes. Um dia, tendo-se tornado grande amigo dessa novo colega invulgarmente belo e sadio, quis convidá-lo à sua terra e a sua casa, vontade essa que prontamente lhe transmitiu. Sentindo-se bastante honrado, o jovem acentiu, pois só ainda uma vez desembarcara no referido local, donde havia colhido e levado consigo as mais calorosas memórias.

Passados alguns meses, desembarcou Mário e o seu novo amigo na terra natal do primeiro e logo se prontificou o anfitrião a apresentar o convidado aos demais habitantes. Contudo, tendo-se esquecido de que se havia posto de mal com os seus conterrâneos, foi recebido com azedume. Embora entristecido, convidou o jovem para sua casa e para o recompensar daquele inesperado inconveniente pediu à mulher que tratasse o colega como um rei presenteando-o com grande repasto e o mais apurado vinho. E assim, como um hóspede de um palácio, foi recebido durante duas semanas o novo colega.
Tendo chegado o fim da segunda semana, o marinheiro foi subitamente chamado a embarcar e comunicou-o com tom triste à sua esposa e amigo. A esposa lamentou-se e, quanto ao amigo, informou o homem que o seu navio chegaria apenas uma semana mais tarde. Dando um passo em frente, olhando cabisbaixo e circunspecto para Mário, o convidado disse-lhe:

- Amigo, por duas semanas me recebeste debaixo do teu teto. Na tua agradável companhia, e na da tua mulher, usufrui da melhor hospitalidade e mordomia. Esta súbita notícia deixa-me perturbado pois que o meu embarque se fará apenas daqui a mais uma semana e até lá não tenho onde ficar. Permiti, pois, que faça o que noutras circunstâncias nunca te pediria, que permaneça debaixo do teu teto mais sete dias sob a promessa de respeitar e honrar a tua mulher, nos bons termos e disposições de São Julião, o hospitaleiro.

O marinheiro ouviu tudo isto com um terror frio a percorrer-lhe a espinha, pois, se por um lado não se conseguia esquecer das recomendações dos seus conterrâneos, por outro, não podia deixar de ser hospitaleiro para com aquele bom amigo que até ali só lhe mostrara dignidade e confiança. Então, após ter limpo o suor frio da testa e de ter ponderado por uma fracção de segundo, puxou o convidado para um outro quarto, longe dos ouvidos da mulher, e disse-lhe:

- Meu caro, tenho todo o gosto em te conceder esse favor! Contudo, posso apenas acentir sobre certas condições: trata-se de minha mulher. Não duvides que a amo mas é-me difícil conviver com certos comentários da população. Sinto-me enlouquecer e por vezes, quase dou comigo a acreditar nas palavras deles. Mas eles é que são os loucos! Sei-o bem! E é por isso que o preciso provar! Peço-te que na minha ausência fiques atento aos modos de minha mulher contigo sem que, contudo, se tal suceder, cedas aos seus encantos. Contar-me-ás depois, ao meu regresso, sobre o amor que ela me tem. E mais uma coisa: peço-te humildemente que me perdoais este meu ardil pelo facto de não conseguir suportar ter sido excomungado do seio dos meus irmão e parentes, entre os quais estava habituado a viver.

Após ouvir isto e embora estranhando, o convidado achou-se em dívida para com o seu anfitrião e achou por bem pagar-lhe da maneira que lhe era requerido já que de certa forma abusava do prazo da sua boa hospitalidade. Pondo-lhe a mão sobre o ombro, respondeu-lhe:

- Farei como pedes, irmão! Mas deixa que te diga de minha sentença: o teu coração labora em erro se pensa que deve escolher entre esses dois amores – a esposa e a família. Fica, porém, descansado. Averiguarei as inclinações de tua mulher e quase te asseguro que em vão se agita o teu temor.

Os dois amigos selaram o acordo com um aperto de mão e foram dormir. No dia seguinte, pela madrugada, partiu o marinheiro em direcção ao alto mar.
Estando, havia já alguns dias, embarcado e longe de casa, Mário não conseguia conter a sua inquietação e passeava-se no convés à noite, de lá para cá, em vez de dormir. Contemplando o horizonte na direcção da sua terra apertava-se-lhe a garganta e o coração na curiosidade de saber o que por lá se passaria e na impotência de intervir.
Como, entretanto, havia caído doente com febres e delírios, ensimesmado que estava com aquele problema, o capitão desembarcou-o num porto do norte donde, passados alguns dias e já recuperado, apanhou novo navio rumo à sua terra.
Assim que pôs os pés em terra correu para casa e abriu com brusquidão a porta, gritando repetidamente e bem alto pelo nome da mulher. Ninguém respondia. Os quartos estavam vazios. Só as gaivotas se ouviam com os seus gritos cortantes que, embora habituado, agora lhe pareciam tão desconcertantes.
Exausto, puxou de uma cadeira e sentou-se enterrando a cara nas mãos. Depois, lentamente, levantou os olhos vermelhos e humedecidos e foi dar com uma carta sobre a mesa. Era de sua mulher:

Na ausência de Ulisses, para refrear os seus instintos face a um exército de pretendentes, Penélope entregou a totalidade do seu tempo ao laborioso fabrico de uma colcha.
Eu, porém, nunca aprendi costura.

Fim.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Invocaçao a Eros

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
De deleites doces, sinceros
Deixo os mortos e os pacatos
Entrego-me aos gozos severos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
Dos paraísos carnais
O vinho, o fumo e os ais
Os odores que inquietam os tactos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos

Vai-te Tanatos
Vem ó Eros
Fora os ermitérios
Passe-se das palavras aos actos
Abram-se amplos os mistérios
Dancem as leoas e os gatos
Vem ó Eros
Vai-te Tanatos.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Os Senhores dos Adormecidos

Os que despejam esta poção na nossa água
Os Senhores dos Adormecidos
Se acordássemos não podiam nada
Contra nós que somos vivos

Os Senhores dos Adormecidos
Não os ricos ou os poderosos
Os meio-homens enganosos
Que amam representar de protector
Infligem-nos uma dose de dor
Para poderem ser o salvador
Dando palmadinhas nas costas
Nos nossos fracturados ossos!
Saboreando-nos, caviar em tostas,
Num reinado de destroços

Os Senhores dos Adormecidos
Nem sempre os públicos ou os famosos
Muitos andam andrajosos
Pobres e mal nutridos
Fazem-se puros, os orgulhosos -
Puros e pervertidos

Os Senhores dos Adormecidos
Cantam a sua perversa cantilena
A de que eu e tu, nascemos
Com a mente demasiado pequena
Para pensarmos por nós mesmos
É, portanto, forçoso, que os deixemos
Infligir-nos a sua culpa, a sua pena
Porque somos fracos e não sabemos

Os Senhores dos Adormecidos
Os de uma cultura, um só credo
Uma só lição, a doutrina do medo
Pretendem determinar o chão onde pisas
Clamam, o teu cérebro é demasiado pequeno
O mundo é mau, monstruoso, um ermo
Que só eles te podem amar como precisas

O Sr. dos Adormecidos
Defenderá com exultação
O seu real reinado de estrume
Elevando-se aos píncaros da indignação
Quando a verdade vem a lume,
Arrastando a tua dignidade na humilhação
Sempre que a mascara sucumbe

Entre os Srs. Dos Adormecidos há duas estirpes
O mosca tsé-tsé e o varejeira verde
Insistem, resistem, a menos que os estripes
Um, adormece-te em pe, como a um bebé
Para o outro, depois, vir comer-te

Os Srs. dos Adormecidos possuem ponto fraco
São só Senhores enquanto tu fores o servo
Acorda, põe-te a milhas, faz-te já ao largo
Pois, só tu lhes garantes a coroa e o ceptro.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Promontório do Presente

Do promontório do presente
Contemplamos o passado
O caminho aberto e o cerrado
O mar encrespado,
A terra, até onde a vista alcança
A escassez e a bonança
Pesados lado a lado
Para onde pende essa balança?

Do promontório do presente –
Todos, um dia, o teremos que subir
Chegados a loucos,
Miopes e moucos,
Os que a si mesmo fingem
Será, então, altura
De dessa alta envergadura
Testarmos a nossa vertigem

Trémulos de mente e de pernas
Há os que cedo se despenham
E que num voo picado se empenham
A lutar com as vagas nada amenas
Sem sereias serenas
Que lhes mitiguem as penas
Tritões, apenas, que os arpeiam

Outros, pouco afoitos,
Não terão sequer coragem de subir
Serão empurrados por esse cabo
A confrontar o passado – os doidos
Na berma, com o vento a bulir
E o vento grita a sua verdade maldita
Terrível de ouvir

Do promontório do presente
Porque até o presente é ilusório
O justificativo escapatório
É preciso ter presente
Quando sentimos que é premente
Para arrumar o desarrumado
Olhar do presente
Para o distante passado

Do promontório do presente
Precisaremos de óculo, de binóculo,
Para sondar o horizonte obscuro?
E será alto o suficiente o babélico observatório
Para observarmos o Ontem pouco abonatório
Sustentando-nos apenas no presente inseguro?

Quem deseja saber escala a sua escarpa
Galga-o a punho, sem bússola ou mapa
Deixa a máscara no primeiro planalto,
O figurino, no segundo
Dá sem fôlego a última braçada
Ergue-se farto de comer o pó e o nada
E do píncaro contempla o mundo.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Mãos inúteis

Mãos inúteis lavam as lágrimas
De crocodilo, inúteis, ofendem os olhos
Mestres hábeis da mascarada
Garras inúteis que atormentam os sonhos

Luvas inúteis constroem castelos
Fortalezas sem fim, inúteis, portanto
Driblam projectos abjectos, secretos
Fúteis, essas membros, urdem segredos
Fazendo do nada outro tanto

Apêndices inúteis de inúteis vozes
Murmurantes, sussurrantes, confidentes
Comprovam: São mais as vozes que as nozes
Batendo com a língua nos dentes

Próteses inúteis estendidas aos céus, rogando
Juntas, tacteando sem tacto, rezando
Ou sem remorso, acenando adeus
Apertando outras próteses, cumprimentando
Esticando o indicador, traindo
Traindo implacavelmente os seus















Dedos compridos, finos
Com unhas cortantes
Que se cravam, libertinos,
Nas costas dos amantes
Dedos negros, suspeitos
Vorazes e delicados
Que se espetam, inquietos
No coração dos amados

Palmas com a linha da vida: longa
A linha do coração: curta
A linha da razão: ausente
E a linha da memória: diminuta
Palmas batendo palmas
À estatura de palmo e meio
Vendo a sombra agigantar-se
Sob a luz dum candeeiro
Palmas, uma salva de palmas
Para essa alma de carroceiro
Vendo a estatura expandir-se
A troco d'algum dinheiro
Nessa dança emulando Circe
Ó mestre títereiro

Suam as mãos hipócritas
Atrás das costas, uma delas, numa figa, aperta-se
Jurando, outra, sobre o peito, pela alma dos finados
Uma faz, diligente, a continência
E a outra nunca se põe na consciência
Quando dispara sobre os condenados

Essas mãos que recebem, que pedem
Que exigem mais do que merecem
Que se vendem imundas nos mercados
Fazem do homem, homúnculo
E dos asnos, doutorados
Dos espertos, o novo mundo
E dos inteligentes, alienados.

sábado, 7 de julho de 2007

O eunuco da mente

Na sua fortaleza forçada permanece
Um eunuco da mente
Irado e descontente
Que à janela de quando em quando aparece
Para dizer ao mundo como se sente

Esse forçado eunuco da mente
Anseia por fecundar um pensamento diferente
No estéril óvulo da imaginação dolente
Dos outros eunucos da mente, voluntários
Vive, no entanto, como os rosários
No pescoço das beatas pendente
Como o mais pudendo dos emissários

Vive contrafeito
Pois não lhe assiste esse direito
De ser livre e libertino
Para o ventre e para o peito
Procriando as ideias dum novo destino

Chora o eunuco da mente,
Na sua torre de marfim, implacável
Não pode descer, não o consente
O sacro, o puro, o venerável















Do seu marmóreo túmulo vertical
Avista horizontes que não pode comunicar
Está forçado esse eunuco, num pedestal
Preferia ser homem e poder pecar

O eunuco da mente está irado:
“Tirem-me da mente esse cinto da castidade!”
Sobra a semente do seu pecado não consumado
Para fecundar nenhuma verdade

Um dia descerá o eunuco da mente
Um dia, promete, um dia
Dessa torre de marfim, pétrea, fria
E expulsará o celibato num repente
Para fecundar a mãe verdade, um dia
Estuprando a sua essência pia.

domingo, 1 de julho de 2007

Oeiras, um retrato







Foto: Portuguese_eyes







Os figos quase em Agosto, quase violetas
O seu perfume, no ar, um perfume caro
Nevam dos choupos os algodões – ascetas –
- Ascendendo aos céus de Santo Amaro

As ameixas brotando sanguíneas, rutilantes
No monumento ao Ultramar, aos seus mortos
Escorre-nos pelos lábios o seu sumo – bacantes –
- Celebrando c’ o sangue os heróicos esforços

Os jardins ajardinados em disposição cuidada
Por cem mãos zelosas de esmero e veludo
Nos canteiros, ei-los, a flor e a ramada
Da Páscoa ao Inverno, do Verão ao Entrudo

Uma brisa avisa, uma maresia na rua
Uma valsa quente/fria onde uma balsa desmaia
O mar marulha onde o Tejo desagua
E a balsa, bem-vinda, vem dar à nossa praia

Galopam os corcéis, na estação, as garças
Nos parques, as crianças, findando as brincadeiras
Fazem birras aos pais em cândidas farsas
Implorando-lhes: não deixem a Vila de Oeiras!

Por toda esta vida vidrante vibra a feira,
A exposição, a festa, o fabuloso arraial
Corre pelo quadrante a fascinante ribeira
Da Laje ao Atlântico, através do Pombal.

sábado, 30 de junho de 2007

Cemitério dos prazeres







A morte de Orpheu -Emile Levi (1826 -1890)













Sombras mil e fantasmas outros tantos
Que a mim se atiçavam
Se esganiçavam em prantos
Delinquentes e outros seres danados
Atraía-os de todos os lados
Falsos extrovertidos, eu não sei quantos

Buscavam apoio, compreensão
E nisso éramos unidos, na solidão
Mas depois, talvez p’la vergonha
Porque ficar em divida é uma prisão
Castigavam-me a boa acção

Quem salvava eu, afinal?
Quem ia eu buscar ao fundo do oceano
Senão o meu próprio corpo
No corpo de outro humano?

As megeras manhosas, ainda que belas
Na minha cama pernoitavam à luz das velas
Os astutos proxenetas
E outros diabos pernetas
Todos me rodeavam – pudera! –
- Eu alimentava essa grande fera

Definharia eu para conjurar tais abutres?
Estaria preso para emparelhar com presidiários?
Buscava o céu em Gomorra
O paraíso em Sodoma
A face dos anjos na dos ordinários

Ah! Andar no labirinto,
Ainda não definido,
É um deleite distinto
De um ser vendido

Vive-se tudo na pressa
Os prazeres e a história
E no fim da remessa
Nem memória nem glória

Um prazer é coisa extensa
Para se ir saboreando
Sôfregos e com pressa
Torna-se mediano

Um prazer é sentar e ver
É deixar embeber o corpo
É de mim me esquecer
Passeando por ti um pouco.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Poemas orgânicos: Alergias
















(Monumento à obra de Gogol, "O nariz")



Que vida tem um homem que não respira?
Fecha-se em casa, anda rezingão
Sufoca, agita-se, transpira
Tentando fugir ao caixão

Que vida tem um homem que não respira
Prestes a implodir, no limite
Anda com a vida na mira
Presa da sinusite

Que vida tem um homem que sufoca,
Que sufoca e que sufoca, sem alegria
Esconde-se na sua escura e húmida toca
Obstipado pela alergia

Que vida tem um homem que funga,
Que funga e que funga, assaz desesperado
Impossibilitado de inalar a vida
Pelo seu septo desviado

Que vida tem um homem que assoa,
Que assoa e que assoa, estando sempre só
Que dizer desse cidadão de proa
Que se atordoa até com o pó

Que vida tem um homem que não dorme,
Que não dorme e não dorme, que vive na quimera
Nunca está bem a dormir ou bem acordado
Vive em fila de espera

Que vida tem um homem que espirra,
Que espirra e que espirra, de olhos raiados
Esse homem que com tudo embirra
E que todos deixa chateados

Que vida tem um homem que escarra,
Que escarra e que escarra, expelindo o veneno
A sua doença é uma amarra
O seu coração faz-se pequeno

Se na rua virem este homem passar
Sejam compreensivos para com a sua ira
Dêem-lhe espaço, o seu devido lugar
Lembrem-se, ele afinal não respira

Se na rua virem este homem passar
Sejam compreensivos, não façam troça
Deixem-no primeiro altercar
E depois, quando se cansar
Ajudem-no a sair da fossa.

sábado, 23 de junho de 2007

Loja de almas
















(Persephone - Thomas Hart Benton)




Amou-me um dia uma rapariga
Com fome, com sofreguidão
Ria, chorava, andava perdida
Idolatrava-me, queria perdão

Devotou-se-me um dia uma rapariga
E seu amor era total sacrifício
Que se lhe pedisse, a essa amiga,
Atirava-se ao precipício

Não sei que fizera
Para merecer tal sectarismo
Seria magia negra
Que a dispunha ao abismo?
Seria partida –
Paixão não era –
Esse ponto cúmulo do histerismo?

Indaguei e acabei por descobrir
Não tinha alma e partilhava da minha
Mas não podia eu, uma alma, dividir
Era já pequenina, a alma que eu tinha

Compadeci-me dela, da desalmada
Quis achar alma que lhe servisse
Procurei numa loja alada
Uma que também me divertisse

Impingi-lhe uma alma novinha em folha
Uma de rapace e moderna fêmea
Uma fatiota de minha escolha
Para dela fazer minha alma gémea

Vesti-a, levei-a a sair, a candura
Mas que mal se sentiu nesse fato
Ficava-lhe apertada a cintura
Demasiado largo, o sapato

Fui descobri-la desnuda, nuínha
Chorando à beira de um regato
Despira a alma que não lhe convinha
Ficara bela como o pecado.

sábado, 16 de junho de 2007

As três irmãs















(Morte de Sardanapal, Delacroix, 1827, Museu do Louvre.)




Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

Hilde, uma chama
Se corava incendiava
A primeira que vi
A primeira que amei
Um amor de segredo
Pois tal era meu medo
De realizar o que fantasiava
De hominizar quem divinizei


Ao longe seguia Hilde
Pelo campo, pela vereda
E descobrindo-a adormecida
Todo eu era labareda

Ao longe seguia Hilde
E aquele amor era um perigo
Fazia ela um gesto simples
E tinha-me por terra, rendido

Mas porque o sonho é insuficiente
E quem nele vive bem o sente
Procurei Hilde a ver se desfazia
A minha insensata erotomania

Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três Formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

De peito feito como quem se decide
De passo apressado dirigi-me a Alvide
Ia confessar-me seu indefectível fã
Abriu-me a porta a bela Brunilde
Pasmei! Era tão bela quanto a irmã

De perto, muito de perto
Seguia Brunilde
Colava-me ao seu peito como um talismã
Sonhar com Hilde
Era um passatempo humilde
Mas ao fantasiar correcto
(De perto, de muito perto)
Preferi provar A maçã

Brunilde era uma rola esquiva
Alimentava uma larga pretendência
Mentia e era manipulativa
Cultivava-me a demência

Negava-se a ser só de um indivíduo
Queria, dizia, a liberdade
Mas que liberdade era aquela
Que me mantinha cativo?
Como repartir a felicidade?

Faminto de seu corpo e
De sua traição alimentado
Fechei os olhos à facada
Para ficar ao seu lado
Mas aquele, estava visto,
Mais que comprovado,
Era um mau compromisso,
Um negocio furado
Eu dava e ela recebia,
Jamais me retribuía,
Encantada!

Humilhado,
Tratado como um capacho
A caminho me pus de Alvide
Estava bem bebido
Bêbedo como um cacho,
Divertido comigo,
Borracho
Abriu-me a porta Ermegilde



Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide



Além de bela, Ermegilde era doce
De uma bondade compreensiva
Chorei no seu colo, a dor dissipou-se
E ela, que não era dissoluta, furtiva,
Pelo raiar da manhã
Havia tomado o lugar da irmã

À fantasia intangivel de Hilde
Substituíra eu o tacto real de Brunilde
Mas cansado de provar A maçã
Ao raiar da manhã
Eu amava Ermegilde

Juntámo-nos e celebrámos a boda
Dançámos, fizemos grande festa,
Cansado de ma ou nenhuma alcova
Servia-me quem tinha dois dedos de testa

Assim me casei
Não quis só o sonho ou só o real
Quis o real total sonhado
Há noites, contudo, confesso,
Em que dificilmente adormeço
Em que por uma ideia fixa sou perturbado
A ideia de que a Ermegilde
Falta um pouco de Hilde e de Brunilde

Então, para esses dias distantes
Do passado, me deixo levar
E por breves, muito breves,
Brevissimos instantes
Revivo o extase dos amantes
Ainda por domar

Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três Formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

quinta-feira, 14 de junho de 2007

O aprendizado
















(Goya - Saturno)



Quando finalmente,
Homem me tornei,
De mente, feições, gestos e corpo
E senti que me insuflavam, os deuses,
De quatro, o segundo sopro
Chamou-me, meu pai com a sua expressão sisuda
Não me reeprendeu
Não me sovou pela minha conduta
Antes, um pecúlio, no bolso, me meteu
E, preservando a fronte carrancuda
Disse-me: "Toma! Chegou a hora! Vai à luta!"

Não sabia o que me sucederia, relembro,
Era uma tarde chuvosa de Novembro
E sem tempo para soluço, sem um único ai
Deixei, tremendo, a casa de meu pai

Eu era instruído, criativo, tinha sonhos
Oh, que sonhos!
Oh, ingenuidade!
Construir Elíseus gregos,
Devolver a visão aos cegos,
Colocar a nação no pódio
Tornar férteis desertos secos
(Oh, verde idade!)
Achar a cura do ódio

E a pouco e pouco
A cada porta que batia
À procura de ofício
Era um sonho que se desfazia
Ninguém queria um salvador belo e bravo
Por acaso, não saberia eu de um diligente escravo?

Escravos dos escravos dos escravos!
Cravos dos cravos, encravados!
Dizia esta filosofia que por toda a parte ouvi
Que senhor de si é quem tem escravos
E que se eu não os tinha era porque um deveria ser
“Alegre-se, senhor!”, diziam,
"Quem é escravo tem porta onde bater!"

Mas que profissão era essa, a de ser escravo?
Onde podia eu tirar um curso de subserviência?
Era um dom com que se nascia?
Uma manifesta tendência?
Uma inata apetência para o servir e ser rebaixado?
“Oh! Meu deus! Tenho fome, não quero morrer!
Preciso de trabalhar para comer!
Alguém, por favor, me ensina a ser escravo?”

E pelas ruas da cidade voguei
Que nem um perdido
Visto a alternativa a ser escravo
Ser tornar-me bandido
Procurei a pior e a mais abjecta súcia
Uma cáfila tal que não a perdoaria a irmã Lúcia
E desde logo, na arte da burla, comecei a ser instruído

Surripiar, escamotear,
Roubar ao cego em vez do curar
Toda esta técnica eu observava, pasmado
Mas como nesse mundo baixo como o ventre
Nada de nada é sagrado
A súcia não descansou contente
Enquanto não me viu defraudado




















“Ah! Não há sítio seguro!”, queixei-me
“Não há castelo, fortaleza ou muro
Que por muito duro
Coloque à escravidão açaime"
E já perto da amargura, do cinismo
Vi que perdia a inocência
Corri para os braços do baptismo,
Da divina clemência
E desfazendo-me do meu parco dinheiro
Dei entrada num mosteiro

Daí em diante, doravante
Concomitante com a beatitude,
No contrato expresso realizado com Jeová
Desdobrava-me em solicitude
Para não despertar a Sua ira
E poder cear o Seu maná

Ajoelhava-me a elogiá-Lo
Vinte vezes ao dia
E nesse cerimónia
Ele era tudo, eu não existia,
Clamava pela sua infinita boaventura
Mas uma ideia, contudo, persistia
O que era aquela sacristia
Senão um altar à escravatura?

Desordenei-me e fui excomungado
Saí dali, eu o diabo a meu lado
E desde então,
Após toda a experiência e verificação
Ousei concluir no fim:
“Não existe na terra um lugar para mim!”

Desde então passo fome,
Não sei se amanhã tenho tecto
E isto não é senão mais agrura
Sei-o porque escolhi esse defeito
Não sei para o que tenho jeito
Mas não o tenho, de certeza, para a escravatura

Olho, hoje, o firmamento
Sinto acariciar-me a cara, o vento
Rodeiam-me os mistérios da terra
A treva brilhante e a aurora obscura
E sinto inflamar-me por dentro
O fogo portento do homem que erra
E é sem escravatura.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Há dias...















(Goya - O sono da razao)




Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

Há dias em que tudo me acomete como desfocado
Velho, bolorento, usado e coçado
Dias em que sou arrastado por esse sono
E que me deixo ir, não esperando retorno
Vai-te ó dia danado!
Não esperarei pelo teu retorno!

Há dias, dizias, "Este és mesmo tu?
É que não pareces o mesmo!"
E então, eu que não me mexia
E ainda hoje não me mexo
Languescido pelo sono
Disse-te: "Meu amigo
Não te preocupes comigo
Deixa-me morrer no sono!

Mas tu não bateste a porta, não saíste
E, dali a nada, o sono
Havia feito mais uma vítima,
E sentado ao meu lado,
De sonolência infinita
Falaste-me de um tal aperto no estômago
E de uma certa melancolia
Disse-te com ar de quem sabia:
"Ao príncipio é o aperto e o sono,
Depois vem a melancolia."

Eu, sabedor experiente destas coisas
E tu, um iniciado ao sono
Cada qual para seu lado,
Já sonhavamos sem retorno
Quando um especialista bem cursado
Entrou e viu a melancolia
que se apossara do possesso dia
Gememos: "Vede doutor, a melancolia
Que se apossou do nosso dia!"

Pôs-se ele a vasculhar numa mala
Láudanos e derivados
Opiáceos almiscarados
E a pouco e pouco, reparávamos,
Abria a boca, bocejava,
Adormecendo sobre o compêndio de psiquiatria
Era evidente, ele bem tentara,
Não havia cura para a melancolia
Venha a física, a química avançada, a filosofia
Não há cura para esta melancolia!

E paulatinamente, condensada num vapor
A maleita se adensava,
Propagando o torpor
Pelas frestas de janelas e portas se evadia
Trazendo o sono a quem ainda não dormia
Envolvendo o país numa inédita disforia
"Ó deuses!", com um olho aberto e outro fechado, eu rogava
"Salvem o país desta disforia!"




















Pálido, debilitado, a muito custo me ergui
Já via a responsabilidade de tudo isto
Recair sobre mim
Lavei a cara com água fria
Refresquei-me e então, com alívio senti
Que não havia razões para melancolias
Que o aperto no meu estômago
Era afinal porque não comia há dias
Não há neste país inatas melancolias
Há apenas gente que não come há dias!

Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

domingo, 10 de junho de 2007

Há mais no meu país do que o vespertino diz




















Há mais no meu país
Do que o vespertino diz
Há fome, mentira, peculato
Mas também muito herói intemerato
Que se atreve a viver feliz

Há mais no meu país
Do que o vespertino diz
Há pobreza, prepotência, indigência
Mas também quem não abdique da inteligência
Para viver a vida que sempre quis

Fraude, droga, tráfico de influências
Roubo por esticão e outras delinquências
Canta o escatológico vespertino
É melhor, pelo que nos diz, abandonar este país
Por cá, difunde, não há destino

Mas há o que não vem nesse cinzento diário
Nas secções política, económica ou social
Que não o prevê o horóscopo ou lamenta o obituário
Que não é burla astuta ou conto do vigário
Que não vem na primeira página desse jornal















Além dos processos parados, das filas de espera, dos autarcas,
Para lá dos sacos azuis proliferando nas comarcas,
Das o.p.a.’s, das o.t.a.’s, das quotas na assembleia,
Das gaffes, fait-divers, risotas – panaceia
Além de tudo isso, e do mais que nos enguiça o juízo
Há maneira de escapar há teia que nos enleia
Há a inata veia de seguirmos a nossa ideia

Por isso cantai, ó português
Como outro povo jamais o fez
Pois possuis o ceptro do livre arbítrio
E a coroa divina da consciência
Vinde da cidade, do monte, do vale e do rio
Responde com felicidade, dançando no estio
Cala com a tua voz essa voz sem ciência.

Estender a mão, agarrar um sonho















Estender a mão, querer estender a mão,
E o braço pesado, inerte, que é lento em alcançar
Chega tarde ao que procura
Encontra apenas amargura
Mandam-no procurar em outro lugar

Desajeitado, lasso, o corpo desse braço
Arrasta-se ao acaso
Anda a deambular
Busca o que viu num sonho fugidio
Promessa de ameno e pleno estio
Anda errado e condenado,
Condenado a errar

Que capricho desse rude corpo, ensimesmado
Face de réu, queixo caído, calva cabeça
Que ao encalce do nada cambaleia, obstinado
Esbarra em vós e prossegue, embriagado
Conjurando o diabo em santa defesa

Ó sonho, resgatai-me ao sonho!
Que em mil trabalhos me imolo,
Sedento de te alcançar
Buscar-te é tarefa árdua, verdadeiro desconsolo
Um exercício fictício digno de um tôlo
Nuvem, porque houvera eu de te sonhar?