sábado, 30 de junho de 2007

Cemitério dos prazeres







A morte de Orpheu -Emile Levi (1826 -1890)













Sombras mil e fantasmas outros tantos
Que a mim se atiçavam
Se esganiçavam em prantos
Delinquentes e outros seres danados
Atraía-os de todos os lados
Falsos extrovertidos, eu não sei quantos

Buscavam apoio, compreensão
E nisso éramos unidos, na solidão
Mas depois, talvez p’la vergonha
Porque ficar em divida é uma prisão
Castigavam-me a boa acção

Quem salvava eu, afinal?
Quem ia eu buscar ao fundo do oceano
Senão o meu próprio corpo
No corpo de outro humano?

As megeras manhosas, ainda que belas
Na minha cama pernoitavam à luz das velas
Os astutos proxenetas
E outros diabos pernetas
Todos me rodeavam – pudera! –
- Eu alimentava essa grande fera

Definharia eu para conjurar tais abutres?
Estaria preso para emparelhar com presidiários?
Buscava o céu em Gomorra
O paraíso em Sodoma
A face dos anjos na dos ordinários

Ah! Andar no labirinto,
Ainda não definido,
É um deleite distinto
De um ser vendido

Vive-se tudo na pressa
Os prazeres e a história
E no fim da remessa
Nem memória nem glória

Um prazer é coisa extensa
Para se ir saboreando
Sôfregos e com pressa
Torna-se mediano

Um prazer é sentar e ver
É deixar embeber o corpo
É de mim me esquecer
Passeando por ti um pouco.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Poemas orgânicos: Alergias
















(Monumento à obra de Gogol, "O nariz")



Que vida tem um homem que não respira?
Fecha-se em casa, anda rezingão
Sufoca, agita-se, transpira
Tentando fugir ao caixão

Que vida tem um homem que não respira
Prestes a implodir, no limite
Anda com a vida na mira
Presa da sinusite

Que vida tem um homem que sufoca,
Que sufoca e que sufoca, sem alegria
Esconde-se na sua escura e húmida toca
Obstipado pela alergia

Que vida tem um homem que funga,
Que funga e que funga, assaz desesperado
Impossibilitado de inalar a vida
Pelo seu septo desviado

Que vida tem um homem que assoa,
Que assoa e que assoa, estando sempre só
Que dizer desse cidadão de proa
Que se atordoa até com o pó

Que vida tem um homem que não dorme,
Que não dorme e não dorme, que vive na quimera
Nunca está bem a dormir ou bem acordado
Vive em fila de espera

Que vida tem um homem que espirra,
Que espirra e que espirra, de olhos raiados
Esse homem que com tudo embirra
E que todos deixa chateados

Que vida tem um homem que escarra,
Que escarra e que escarra, expelindo o veneno
A sua doença é uma amarra
O seu coração faz-se pequeno

Se na rua virem este homem passar
Sejam compreensivos para com a sua ira
Dêem-lhe espaço, o seu devido lugar
Lembrem-se, ele afinal não respira

Se na rua virem este homem passar
Sejam compreensivos, não façam troça
Deixem-no primeiro altercar
E depois, quando se cansar
Ajudem-no a sair da fossa.

sábado, 23 de junho de 2007

Loja de almas
















(Persephone - Thomas Hart Benton)




Amou-me um dia uma rapariga
Com fome, com sofreguidão
Ria, chorava, andava perdida
Idolatrava-me, queria perdão

Devotou-se-me um dia uma rapariga
E seu amor era total sacrifício
Que se lhe pedisse, a essa amiga,
Atirava-se ao precipício

Não sei que fizera
Para merecer tal sectarismo
Seria magia negra
Que a dispunha ao abismo?
Seria partida –
Paixão não era –
Esse ponto cúmulo do histerismo?

Indaguei e acabei por descobrir
Não tinha alma e partilhava da minha
Mas não podia eu, uma alma, dividir
Era já pequenina, a alma que eu tinha

Compadeci-me dela, da desalmada
Quis achar alma que lhe servisse
Procurei numa loja alada
Uma que também me divertisse

Impingi-lhe uma alma novinha em folha
Uma de rapace e moderna fêmea
Uma fatiota de minha escolha
Para dela fazer minha alma gémea

Vesti-a, levei-a a sair, a candura
Mas que mal se sentiu nesse fato
Ficava-lhe apertada a cintura
Demasiado largo, o sapato

Fui descobri-la desnuda, nuínha
Chorando à beira de um regato
Despira a alma que não lhe convinha
Ficara bela como o pecado.

sábado, 16 de junho de 2007

As três irmãs















(Morte de Sardanapal, Delacroix, 1827, Museu do Louvre.)




Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

Hilde, uma chama
Se corava incendiava
A primeira que vi
A primeira que amei
Um amor de segredo
Pois tal era meu medo
De realizar o que fantasiava
De hominizar quem divinizei


Ao longe seguia Hilde
Pelo campo, pela vereda
E descobrindo-a adormecida
Todo eu era labareda

Ao longe seguia Hilde
E aquele amor era um perigo
Fazia ela um gesto simples
E tinha-me por terra, rendido

Mas porque o sonho é insuficiente
E quem nele vive bem o sente
Procurei Hilde a ver se desfazia
A minha insensata erotomania

Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três Formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

De peito feito como quem se decide
De passo apressado dirigi-me a Alvide
Ia confessar-me seu indefectível fã
Abriu-me a porta a bela Brunilde
Pasmei! Era tão bela quanto a irmã

De perto, muito de perto
Seguia Brunilde
Colava-me ao seu peito como um talismã
Sonhar com Hilde
Era um passatempo humilde
Mas ao fantasiar correcto
(De perto, de muito perto)
Preferi provar A maçã

Brunilde era uma rola esquiva
Alimentava uma larga pretendência
Mentia e era manipulativa
Cultivava-me a demência

Negava-se a ser só de um indivíduo
Queria, dizia, a liberdade
Mas que liberdade era aquela
Que me mantinha cativo?
Como repartir a felicidade?

Faminto de seu corpo e
De sua traição alimentado
Fechei os olhos à facada
Para ficar ao seu lado
Mas aquele, estava visto,
Mais que comprovado,
Era um mau compromisso,
Um negocio furado
Eu dava e ela recebia,
Jamais me retribuía,
Encantada!

Humilhado,
Tratado como um capacho
A caminho me pus de Alvide
Estava bem bebido
Bêbedo como um cacho,
Divertido comigo,
Borracho
Abriu-me a porta Ermegilde



Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide



Além de bela, Ermegilde era doce
De uma bondade compreensiva
Chorei no seu colo, a dor dissipou-se
E ela, que não era dissoluta, furtiva,
Pelo raiar da manhã
Havia tomado o lugar da irmã

À fantasia intangivel de Hilde
Substituíra eu o tacto real de Brunilde
Mas cansado de provar A maçã
Ao raiar da manhã
Eu amava Ermegilde

Juntámo-nos e celebrámos a boda
Dançámos, fizemos grande festa,
Cansado de ma ou nenhuma alcova
Servia-me quem tinha dois dedos de testa

Assim me casei
Não quis só o sonho ou só o real
Quis o real total sonhado
Há noites, contudo, confesso,
Em que dificilmente adormeço
Em que por uma ideia fixa sou perturbado
A ideia de que a Ermegilde
Falta um pouco de Hilde e de Brunilde

Então, para esses dias distantes
Do passado, me deixo levar
E por breves, muito breves,
Brevissimos instantes
Revivo o extase dos amantes
Ainda por domar

Havia três irmãs
Três frescas romãs
Hilde,
Brunilde e
Ermegilde,
Todas as três belas e sãs
Lá para os reguengos de Alvide
Três Formosas aldeãs
Quem as três vê não se decide

quinta-feira, 14 de junho de 2007

O aprendizado
















(Goya - Saturno)



Quando finalmente,
Homem me tornei,
De mente, feições, gestos e corpo
E senti que me insuflavam, os deuses,
De quatro, o segundo sopro
Chamou-me, meu pai com a sua expressão sisuda
Não me reeprendeu
Não me sovou pela minha conduta
Antes, um pecúlio, no bolso, me meteu
E, preservando a fronte carrancuda
Disse-me: "Toma! Chegou a hora! Vai à luta!"

Não sabia o que me sucederia, relembro,
Era uma tarde chuvosa de Novembro
E sem tempo para soluço, sem um único ai
Deixei, tremendo, a casa de meu pai

Eu era instruído, criativo, tinha sonhos
Oh, que sonhos!
Oh, ingenuidade!
Construir Elíseus gregos,
Devolver a visão aos cegos,
Colocar a nação no pódio
Tornar férteis desertos secos
(Oh, verde idade!)
Achar a cura do ódio

E a pouco e pouco
A cada porta que batia
À procura de ofício
Era um sonho que se desfazia
Ninguém queria um salvador belo e bravo
Por acaso, não saberia eu de um diligente escravo?

Escravos dos escravos dos escravos!
Cravos dos cravos, encravados!
Dizia esta filosofia que por toda a parte ouvi
Que senhor de si é quem tem escravos
E que se eu não os tinha era porque um deveria ser
“Alegre-se, senhor!”, diziam,
"Quem é escravo tem porta onde bater!"

Mas que profissão era essa, a de ser escravo?
Onde podia eu tirar um curso de subserviência?
Era um dom com que se nascia?
Uma manifesta tendência?
Uma inata apetência para o servir e ser rebaixado?
“Oh! Meu deus! Tenho fome, não quero morrer!
Preciso de trabalhar para comer!
Alguém, por favor, me ensina a ser escravo?”

E pelas ruas da cidade voguei
Que nem um perdido
Visto a alternativa a ser escravo
Ser tornar-me bandido
Procurei a pior e a mais abjecta súcia
Uma cáfila tal que não a perdoaria a irmã Lúcia
E desde logo, na arte da burla, comecei a ser instruído

Surripiar, escamotear,
Roubar ao cego em vez do curar
Toda esta técnica eu observava, pasmado
Mas como nesse mundo baixo como o ventre
Nada de nada é sagrado
A súcia não descansou contente
Enquanto não me viu defraudado




















“Ah! Não há sítio seguro!”, queixei-me
“Não há castelo, fortaleza ou muro
Que por muito duro
Coloque à escravidão açaime"
E já perto da amargura, do cinismo
Vi que perdia a inocência
Corri para os braços do baptismo,
Da divina clemência
E desfazendo-me do meu parco dinheiro
Dei entrada num mosteiro

Daí em diante, doravante
Concomitante com a beatitude,
No contrato expresso realizado com Jeová
Desdobrava-me em solicitude
Para não despertar a Sua ira
E poder cear o Seu maná

Ajoelhava-me a elogiá-Lo
Vinte vezes ao dia
E nesse cerimónia
Ele era tudo, eu não existia,
Clamava pela sua infinita boaventura
Mas uma ideia, contudo, persistia
O que era aquela sacristia
Senão um altar à escravatura?

Desordenei-me e fui excomungado
Saí dali, eu o diabo a meu lado
E desde então,
Após toda a experiência e verificação
Ousei concluir no fim:
“Não existe na terra um lugar para mim!”

Desde então passo fome,
Não sei se amanhã tenho tecto
E isto não é senão mais agrura
Sei-o porque escolhi esse defeito
Não sei para o que tenho jeito
Mas não o tenho, de certeza, para a escravatura

Olho, hoje, o firmamento
Sinto acariciar-me a cara, o vento
Rodeiam-me os mistérios da terra
A treva brilhante e a aurora obscura
E sinto inflamar-me por dentro
O fogo portento do homem que erra
E é sem escravatura.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Há dias...















(Goya - O sono da razao)




Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

Há dias em que tudo me acomete como desfocado
Velho, bolorento, usado e coçado
Dias em que sou arrastado por esse sono
E que me deixo ir, não esperando retorno
Vai-te ó dia danado!
Não esperarei pelo teu retorno!

Há dias, dizias, "Este és mesmo tu?
É que não pareces o mesmo!"
E então, eu que não me mexia
E ainda hoje não me mexo
Languescido pelo sono
Disse-te: "Meu amigo
Não te preocupes comigo
Deixa-me morrer no sono!

Mas tu não bateste a porta, não saíste
E, dali a nada, o sono
Havia feito mais uma vítima,
E sentado ao meu lado,
De sonolência infinita
Falaste-me de um tal aperto no estômago
E de uma certa melancolia
Disse-te com ar de quem sabia:
"Ao príncipio é o aperto e o sono,
Depois vem a melancolia."

Eu, sabedor experiente destas coisas
E tu, um iniciado ao sono
Cada qual para seu lado,
Já sonhavamos sem retorno
Quando um especialista bem cursado
Entrou e viu a melancolia
que se apossara do possesso dia
Gememos: "Vede doutor, a melancolia
Que se apossou do nosso dia!"

Pôs-se ele a vasculhar numa mala
Láudanos e derivados
Opiáceos almiscarados
E a pouco e pouco, reparávamos,
Abria a boca, bocejava,
Adormecendo sobre o compêndio de psiquiatria
Era evidente, ele bem tentara,
Não havia cura para a melancolia
Venha a física, a química avançada, a filosofia
Não há cura para esta melancolia!

E paulatinamente, condensada num vapor
A maleita se adensava,
Propagando o torpor
Pelas frestas de janelas e portas se evadia
Trazendo o sono a quem ainda não dormia
Envolvendo o país numa inédita disforia
"Ó deuses!", com um olho aberto e outro fechado, eu rogava
"Salvem o país desta disforia!"




















Pálido, debilitado, a muito custo me ergui
Já via a responsabilidade de tudo isto
Recair sobre mim
Lavei a cara com água fria
Refresquei-me e então, com alívio senti
Que não havia razões para melancolias
Que o aperto no meu estômago
Era afinal porque não comia há dias
Não há neste país inatas melancolias
Há apenas gente que não come há dias!

Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

domingo, 10 de junho de 2007

Há mais no meu país do que o vespertino diz




















Há mais no meu país
Do que o vespertino diz
Há fome, mentira, peculato
Mas também muito herói intemerato
Que se atreve a viver feliz

Há mais no meu país
Do que o vespertino diz
Há pobreza, prepotência, indigência
Mas também quem não abdique da inteligência
Para viver a vida que sempre quis

Fraude, droga, tráfico de influências
Roubo por esticão e outras delinquências
Canta o escatológico vespertino
É melhor, pelo que nos diz, abandonar este país
Por cá, difunde, não há destino

Mas há o que não vem nesse cinzento diário
Nas secções política, económica ou social
Que não o prevê o horóscopo ou lamenta o obituário
Que não é burla astuta ou conto do vigário
Que não vem na primeira página desse jornal















Além dos processos parados, das filas de espera, dos autarcas,
Para lá dos sacos azuis proliferando nas comarcas,
Das o.p.a.’s, das o.t.a.’s, das quotas na assembleia,
Das gaffes, fait-divers, risotas – panaceia
Além de tudo isso, e do mais que nos enguiça o juízo
Há maneira de escapar há teia que nos enleia
Há a inata veia de seguirmos a nossa ideia

Por isso cantai, ó português
Como outro povo jamais o fez
Pois possuis o ceptro do livre arbítrio
E a coroa divina da consciência
Vinde da cidade, do monte, do vale e do rio
Responde com felicidade, dançando no estio
Cala com a tua voz essa voz sem ciência.

Estender a mão, agarrar um sonho















Estender a mão, querer estender a mão,
E o braço pesado, inerte, que é lento em alcançar
Chega tarde ao que procura
Encontra apenas amargura
Mandam-no procurar em outro lugar

Desajeitado, lasso, o corpo desse braço
Arrasta-se ao acaso
Anda a deambular
Busca o que viu num sonho fugidio
Promessa de ameno e pleno estio
Anda errado e condenado,
Condenado a errar

Que capricho desse rude corpo, ensimesmado
Face de réu, queixo caído, calva cabeça
Que ao encalce do nada cambaleia, obstinado
Esbarra em vós e prossegue, embriagado
Conjurando o diabo em santa defesa

Ó sonho, resgatai-me ao sonho!
Que em mil trabalhos me imolo,
Sedento de te alcançar
Buscar-te é tarefa árdua, verdadeiro desconsolo
Um exercício fictício digno de um tôlo
Nuvem, porque houvera eu de te sonhar?