domingo, 18 de maio de 2008

A arca no sotão

Subi ao sotão e
encontrei uma arca
cuja chave não se queria evidenciar
arca maldita! Rais-ta-parta
dou-lhe um pontapé
que a põe a chiar

Abre, hiante, a grande boca
De couro e tecido, escancarada
e de lá de dentro fita-me o tesouro
uma opulente herança de nada

Máscaras e figurinos,
velharias, monos vários
a sufocar de asma naquele pó
jaquetas de cowboys
e botas de corsários
uma rabeca p'ró só-li-dó

Experimento uma máscara, a medo
que os ácaros me façam presa
e logo surge a estalo de dedo
um vero carnaval de veneza
com cortesãs da realeza

Dançam nos seus espartilhos tira-folêgo
de peitos a soçobrar do decote
e eu sou no meio daquilo tudo, um franganote
que não se contem de surpresa

Fica-me bem esta nova máscara
pois que a vejo a um espelho rachado
estou a sonhar e siderado
só quero acordar acompanhado

Mas àquela festa
já se faziam convidar outros seres
que eu não houvera convocado
esqueletos, fantasmas e outros desmancha-prazeres
bailavam pelo sotão desarrumado

Corri a selar a arca
que não sendo a de Pandora
a breve festa de toda aquela realeza
custou-me um bom trabalho de limpeza
coisa para mais de uma hora.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Indústria

Se as palavras são para dar e vender
se as palavras se vendem
eis a minha oferenda a vós
porque não tenho escolha

Dar uma palavra a quem não a merece,
ou dá-la a quem não a pediu
é como dar um carinho obsoleto
ou que se pressente ameaçador

Por isso as palavras começaram a ser vendidas
para as reconhecerem
para não serem pérolas a porcos

Quem quiser um kilo
vendem-no bem pesado
ou um cabaz de palavras
para oferecer pelo natal

Onde há palavras há vendedores de palavras,
especuladores de palavras,
máquinas de palavras,
licensas para palavrear,
indústrias e fiscais da palavra

O que faz de mim,
no meio disto tudo,
um pirata da palavra:
não tenho licensa
e só digo palavrões.

As minas

Tudo o que gritei para os ouvidos dos moucos
foi tudo o que me revelou a minha cegueira

Tudo o que comi com fome voraz
foi tudo o que se fez sedento de mim

De mim e de outros que não logro em encontrar,
que jazem sepultados sob aço fundido,
levados por ribeiras subterrâneas de palavras
e enchurradas de mal entendidos

Minas de carvão que são minas de tempo mal aproveitado
e onde a tísica se apanha de respirar promessas
e minas de diamantes que gelam e petrificam
o portador da saudade perene

Eu quis cavar com uma picareta
uma saída airosa,
mas perdi demasiado tempo
a enfeitar o túnel.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A boca dos livros

A pilha de livros dá-me aflição,
as extremidades amarelecidas,
páginas que carpem no soalho
lágrimas de heroínas ludibriadas

A enciclopédia sabichona,
e o Decameron hedonista
entram em disputas éticas
numa retórica bovariana

O áquário verte água
sobre a Origem das Espécies
E à Moby Dik furiosa
faz-lhe espécie O Idiota

O nariz sempre no ar, da Bíblia
proclamando-se, arrogante, o livro único
melindra-se com o porte do volumoso
Arquipélago de Gulag

Enquanto a Karenina em três volumes
se inclina docemente
para se encostar ao ombro forte
das Histórias Inquietas

Os Contos Tradicionais
arranham com garras de lobo
a História Universal em 20 fascículos
e esta, que não é um capuchinho vermelho,
que até veio em versão de capa dura,
engendra o Admirável Mundo Novo
procurando resgatar
O povo do Abismo.