terça-feira, 12 de junho de 2007

Há dias...















(Goya - O sono da razao)




Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

Há dias em que tudo me acomete como desfocado
Velho, bolorento, usado e coçado
Dias em que sou arrastado por esse sono
E que me deixo ir, não esperando retorno
Vai-te ó dia danado!
Não esperarei pelo teu retorno!

Há dias, dizias, "Este és mesmo tu?
É que não pareces o mesmo!"
E então, eu que não me mexia
E ainda hoje não me mexo
Languescido pelo sono
Disse-te: "Meu amigo
Não te preocupes comigo
Deixa-me morrer no sono!

Mas tu não bateste a porta, não saíste
E, dali a nada, o sono
Havia feito mais uma vítima,
E sentado ao meu lado,
De sonolência infinita
Falaste-me de um tal aperto no estômago
E de uma certa melancolia
Disse-te com ar de quem sabia:
"Ao príncipio é o aperto e o sono,
Depois vem a melancolia."

Eu, sabedor experiente destas coisas
E tu, um iniciado ao sono
Cada qual para seu lado,
Já sonhavamos sem retorno
Quando um especialista bem cursado
Entrou e viu a melancolia
que se apossara do possesso dia
Gememos: "Vede doutor, a melancolia
Que se apossou do nosso dia!"

Pôs-se ele a vasculhar numa mala
Láudanos e derivados
Opiáceos almiscarados
E a pouco e pouco, reparávamos,
Abria a boca, bocejava,
Adormecendo sobre o compêndio de psiquiatria
Era evidente, ele bem tentara,
Não havia cura para a melancolia
Venha a física, a química avançada, a filosofia
Não há cura para esta melancolia!

E paulatinamente, condensada num vapor
A maleita se adensava,
Propagando o torpor
Pelas frestas de janelas e portas se evadia
Trazendo o sono a quem ainda não dormia
Envolvendo o país numa inédita disforia
"Ó deuses!", com um olho aberto e outro fechado, eu rogava
"Salvem o país desta disforia!"




















Pálido, debilitado, a muito custo me ergui
Já via a responsabilidade de tudo isto
Recair sobre mim
Lavei a cara com água fria
Refresquei-me e então, com alívio senti
Que não havia razões para melancolias
Que o aperto no meu estômago
Era afinal porque não comia há dias
Não há neste país inatas melancolias
Há apenas gente que não come há dias!

Há dias em que tenho por melhor amiga a melancolia
Por melhor confidente, um aperto no estômago
E que o sono indomável
Parece estar cá desde sempre
Vai-te ó sensação abominável
Que estás cá desde sempre!

1 comentário:

Cristal disse...

Querido,

Existem dias de fome,
existem dias de sede,
existem dias com nome
e dias iguais...

Observamos essa realidade
num dia diferente
mas continuamos a embelezar.