sábado, 4 de agosto de 2007

O ausente

Um homem de meia-idade, Mário Manso, tomou-se de amores por uma mulher de uma aldeia vizinha. Essa mulher era bela, da sua geraçao, e havia permanecido solteira por ser muito independente e não aceitar que qualquer um mandasse nela. Os dois casaram-se e foram viver para casa dele, apesar de muito o haverem aconselhado a não o fazer.

- É mulher ruim! Foi cortesã de muitos e acabou desposada de nenhum! Nunca se interessou pelas lides da casa, não sabe sequer costurar!

Protestaram alguns familiares que asseveravam apenas querer o seu bem. Porém, do seu bem sabia ele e não quis dar ouvidos a vozes soltas, até porque aquela fora a única mulher, entre várias, que o havia resgatado a um descontentamento incompreensível que muitos anos grassara dentro de si.
Por dois anos o homem e a mulher se entenderam naquela casa levando vida leve e feliz. Ele, porém, era marinheiro da marinha mercante e andava embarcado uma metade do ano para voltar para junto dela a segunda metade. Ora, nesses dois anos, das duas vezes que regressou à aldeia vindo de mar, lhe foram as vozes soltas adverti-lo de que a esposa, durante a sua ausência, se portava mal relativamente ao laço de conjugalidade. Por duas vezes o Mário Manso desacreditou essas vozes dando apenas ouvidos à sua consciência e às evidências da deferente e carinhosa atitude da sua mulher para com ele.

- É um crime e uma perfídia que envenenem a mente de um homem contra a sua maior e mais querida protectora! - Gritou-lhes e virou as costas a essas vozes fátuas tendo, desse dia em diante, cortado relações com a sua aldeia. Ficando triste e zangado por haver cortado os laços com os seus irmãos, primos e muitos familiares, que perfaziam a totalidade dos habitantes da aldeia, consolou-o a mulher:

- Somente a ti eu pertenço. Digo-te que é precisamente por ter sido habituada a tentações que as aprendi a declinar. Pelo contrário, as tuas irmãs, cunhadas e primas, que por falta de formosura nunca foram tentadas e por obrigação se casaram… elas, sim, muito mais depressa se entregariam aos falsos elogios de um estranho!

Cativado pela beleza e força interior da sua mulher o marinheiro deitava a cabeça no seu regaço, sentindo-se triste mas algo confortado.

- Como podem eles ver crime e sujidade onde tão claramente eu vejo beleza e força?

E perguntando-se isto, adormecia de cansaço pela sua mágoa, com a mulher entrelaçando os dedos no seu cabelo.
Chegado o dia em que teve de voltar a partir para o mar, abraçou e beijou a mulher no porto, frente à grande nau, e os olhos dele estavam humedecidos com lágrimas. A mulher, no entanto, fez como se ignorasse a desconfiança que ele assim lhe demonstrava e encorajou-o.

- Vá, meu esposo! Leva-me contigo neste medalhão e jamais estaremos longe um do outro.

O Mário Manso inclinou a cabeça e ela colocou-lhe o fio com o medalhão em volta do pescoço, ao que após isto ele se afastou com ombros e cabeça descaídos e andar pesado em direcção ao cais de embarque.

Enquanto andava no alto mar o homem era de poucas falas mas muito respeitado pela sua capacidade de trabalho.
Um dia, no meio do Oceano, tendo acabado a sua labuta, olhava contemplativamente o horizonte e pensava na sua esposa quando um estranho se aproximou. Este era um jovem invulgarmente sadio e belo que tendo-se apresentado como seu novo colega assim lhe falou:

- Aí, nessa direcção para onde olhais conheço eu uma bela terra! As vinhas são particularmente resplandecentes e as casas caiadas têm um ar de neve, as mulheres são rosadas e roliças e as solteiras usam lenços verdes na fronte para se indicarem aos pretendentes. Lá para os fins de Março os habitantes reúnem-se todos numa gruta junto ao mar e oram ao deus touro e quando o céu adquire certa cor rosada, como a do primeiro vinho, eles sabem que a colheita vai ser boa. Celebram-se, então, vinte e dois dias e vinte e duas noites de festa e as moças casadoiras fazem-se convidar para bailar saltitando e dando pequenos guinchos como cotovias na alvorada.

Ouvindo isto e meio pasmado, exclamou o marinheiro:

- Mas, diabos! Se não é da minha própria terra que falas!

Tratava-se, com efeito, da sua terra natal, que o jovem havia por uma vez visitado. E muitos dias se seguiram em que os dois, após a labuta, se reuniam naquele convés para recordar como era bela a terra e caricatos os seus habitantes. Um dia, tendo-se tornado grande amigo dessa novo colega invulgarmente belo e sadio, quis convidá-lo à sua terra e a sua casa, vontade essa que prontamente lhe transmitiu. Sentindo-se bastante honrado, o jovem acentiu, pois só ainda uma vez desembarcara no referido local, donde havia colhido e levado consigo as mais calorosas memórias.

Passados alguns meses, desembarcou Mário e o seu novo amigo na terra natal do primeiro e logo se prontificou o anfitrião a apresentar o convidado aos demais habitantes. Contudo, tendo-se esquecido de que se havia posto de mal com os seus conterrâneos, foi recebido com azedume. Embora entristecido, convidou o jovem para sua casa e para o recompensar daquele inesperado inconveniente pediu à mulher que tratasse o colega como um rei presenteando-o com grande repasto e o mais apurado vinho. E assim, como um hóspede de um palácio, foi recebido durante duas semanas o novo colega.
Tendo chegado o fim da segunda semana, o marinheiro foi subitamente chamado a embarcar e comunicou-o com tom triste à sua esposa e amigo. A esposa lamentou-se e, quanto ao amigo, informou o homem que o seu navio chegaria apenas uma semana mais tarde. Dando um passo em frente, olhando cabisbaixo e circunspecto para Mário, o convidado disse-lhe:

- Amigo, por duas semanas me recebeste debaixo do teu teto. Na tua agradável companhia, e na da tua mulher, usufrui da melhor hospitalidade e mordomia. Esta súbita notícia deixa-me perturbado pois que o meu embarque se fará apenas daqui a mais uma semana e até lá não tenho onde ficar. Permiti, pois, que faça o que noutras circunstâncias nunca te pediria, que permaneça debaixo do teu teto mais sete dias sob a promessa de respeitar e honrar a tua mulher, nos bons termos e disposições de São Julião, o hospitaleiro.

O marinheiro ouviu tudo isto com um terror frio a percorrer-lhe a espinha, pois, se por um lado não se conseguia esquecer das recomendações dos seus conterrâneos, por outro, não podia deixar de ser hospitaleiro para com aquele bom amigo que até ali só lhe mostrara dignidade e confiança. Então, após ter limpo o suor frio da testa e de ter ponderado por uma fracção de segundo, puxou o convidado para um outro quarto, longe dos ouvidos da mulher, e disse-lhe:

- Meu caro, tenho todo o gosto em te conceder esse favor! Contudo, posso apenas acentir sobre certas condições: trata-se de minha mulher. Não duvides que a amo mas é-me difícil conviver com certos comentários da população. Sinto-me enlouquecer e por vezes, quase dou comigo a acreditar nas palavras deles. Mas eles é que são os loucos! Sei-o bem! E é por isso que o preciso provar! Peço-te que na minha ausência fiques atento aos modos de minha mulher contigo sem que, contudo, se tal suceder, cedas aos seus encantos. Contar-me-ás depois, ao meu regresso, sobre o amor que ela me tem. E mais uma coisa: peço-te humildemente que me perdoais este meu ardil pelo facto de não conseguir suportar ter sido excomungado do seio dos meus irmão e parentes, entre os quais estava habituado a viver.

Após ouvir isto e embora estranhando, o convidado achou-se em dívida para com o seu anfitrião e achou por bem pagar-lhe da maneira que lhe era requerido já que de certa forma abusava do prazo da sua boa hospitalidade. Pondo-lhe a mão sobre o ombro, respondeu-lhe:

- Farei como pedes, irmão! Mas deixa que te diga de minha sentença: o teu coração labora em erro se pensa que deve escolher entre esses dois amores – a esposa e a família. Fica, porém, descansado. Averiguarei as inclinações de tua mulher e quase te asseguro que em vão se agita o teu temor.

Os dois amigos selaram o acordo com um aperto de mão e foram dormir. No dia seguinte, pela madrugada, partiu o marinheiro em direcção ao alto mar.
Estando, havia já alguns dias, embarcado e longe de casa, Mário não conseguia conter a sua inquietação e passeava-se no convés à noite, de lá para cá, em vez de dormir. Contemplando o horizonte na direcção da sua terra apertava-se-lhe a garganta e o coração na curiosidade de saber o que por lá se passaria e na impotência de intervir.
Como, entretanto, havia caído doente com febres e delírios, ensimesmado que estava com aquele problema, o capitão desembarcou-o num porto do norte donde, passados alguns dias e já recuperado, apanhou novo navio rumo à sua terra.
Assim que pôs os pés em terra correu para casa e abriu com brusquidão a porta, gritando repetidamente e bem alto pelo nome da mulher. Ninguém respondia. Os quartos estavam vazios. Só as gaivotas se ouviam com os seus gritos cortantes que, embora habituado, agora lhe pareciam tão desconcertantes.
Exausto, puxou de uma cadeira e sentou-se enterrando a cara nas mãos. Depois, lentamente, levantou os olhos vermelhos e humedecidos e foi dar com uma carta sobre a mesa. Era de sua mulher:

Na ausência de Ulisses, para refrear os seus instintos face a um exército de pretendentes, Penélope entregou a totalidade do seu tempo ao laborioso fabrico de uma colcha.
Eu, porém, nunca aprendi costura.

Fim.

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