sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Como se adensa o crime

Como se adensa o crime?
O que lhe acrescenta ingrediente?
Como conspira a mente
Para lhe dar o seu aspecto sublime?
Como se transforma um homem num meliante?
Um bom paroquiano num hábil farsante?
Como, per suma, num instante
Se adensa o crime?

No seu lar aconchegado
A Maria põe a mesa
E o Manel, cheio de fraqueza
Após todo o dia a trabalhar
Exige à esposa destreza
Na confecção do manjar

Respinga aquela que não é parva
Que não nasceu para burro de carga
Que se o Manel quer comida
Que vá ele amassar o pão
Mas aquele não vai de meia medida
Levanta alto o bordão
Acaba-lhe ali mesmo com a vida

É presente ao Juiz:
- Porque mataste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor!
Passo a vida a receber ordens
A ser controlado
Não posso consentir, nem pelo mais alto favor
Que na minha casa seja um criado!

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas como se adensa o crime?
Vamos lá explorar!
Como um ser num segundo é pacífico
E no seguinte se põe a altercar
Como atenta uma ovelha
Contra o seu próprio templo?
Vejamos outra cena
A título de exemplo:

O empregado na loja do patrão
Pensa para si na solidão
Na tristeza daquele comércio
Como é injusto que o outro se encha de patacão
Ande por aí jactante como um barão
E este, o que trabalha,
Não veja nem um sestércio

Um dia, decidido
A não fazer mais queixa
Fecha a porta, olha em volta
Deita a mão à caixa

Olha de novo para todo o lado
Apura o total do saqueado
E está Contente porque se decidiu
Das duas opções que a vida lhe deu:
Roubar ou ser roubado

É presente ao juiz:
- Porque roubaste, ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Trabalho que nem um escravo
Não vejo nem um centavo
Porque me rouba o patrão e é louvado?
Porque roubo eu e sou um horror?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho o infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

Mas vamos lá pôr nesta pesquisa mais vontade
A fim de se apurar a verdade
E desvendar como se adensa o crime
Que com os exemplos acima fornecidos
Quase estamos convencidos
Que é exercício sublime

Casa-se a virgem com velha companhia
Com o matrimónio arranjado
E de acordo com o ritual imaculado
Perde, forçada, a essência pia

O velho, que só lhe arrepia
Não possuía esse direito
Vinga-se ela amando jovens de dia
E à noite, negando-lhe o leito

Mas a vida prega partidas
E já namora ela às escondidas
Um jovem oficial de cavalaria
Atiram a um poço o chato do velho
Herdam-lhe o opulento mealheiro
E juntos fazem nova vida

É presente ao juiz:
- Porque mataste ó infeliz?
- Meritoríssimo, Venerável, Honorabilíssimo Senhor Doutor
Se o amor é cego
Porque me forçam ao mesmo?
Obriga o catecismo
A entregarmo-nos sem amor?

Cai o martelo sobre a banca
Arrasta o meirinho a infeliz
E grita-lhe nas costas o juiz:
- Cem anos de prisão!
Dura lex sed lex
E viva Talião!

E agora que estamos na posse de suficientes dados
Para nos sentirmos, com franqueza, deveras chocados
Sabemos que o crime se adensa
Se cumpre e se pensa
Porque a ele somos forçados.

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